Em seu primeiro trabalho publicado no Brasil, A síndrome de Ulisses, Santiago Gamboa, autor colombiano que vive na Espanha, apresenta um retrato contundente da imigração e da vida atribulada dos imigrantes em Paris, no início dos anos 90. Este retrato poderia ser apreciado como sendo a hostilidade vivida pelos que estão fora de suas pátrias na selva de uma megalópole, como São Paulo, Londres, Nova York ou Los Angeles. Há referência ao exílio devido à guerrilha e à ditadura, de forma sutil e bastante ilustrativa, há pitadas do preconceito da polícia francesa para com os árabes, há questões inexplicáveis como o porquê da tórrida calefação nos ambientes internos parisienses.
O protagonista — um jovem jornalista e escritor colombiano — deixa Madri e chega a Paris para cursar um doutorado na Sorbonne. O glamour da famosa universidade se dispersa pela baixa qualidade das poucas aulas e pelas condições de vida enfrentadas pelo rapaz: viver num cubículo, sofrer terrivelmente com o frio, a falta de recursos e a solidão. Aos poucos se aproxima de uma colônia de imigrantes colombianos e se deleita com uma série de aventuras amorosas. Porém, a condição de trabalho continua precária: dá aulas de espanhol numa escola em que alguns alunos rejeitam seu “sotaque colombiano”, e lava pratos num restaurante chinês, onde se submete, no porão, a algo que jamais imaginara, pela sobrevivência.
Das amizades do narrador consolida-se a trama do livro: Jung, um homem de aproximadamente 50 anos, que divide com ele o tanque em que são lavados os pratos, em meio a molhos gordurosos e temperos ácidos; Salim, seu colega no curso da Sorbonne; Paula, que conhecera numa festa e com que vive as mais orgásticas experiências; Gastón, um velho professor de filosofia de quem se aproxima devido ao desaparecimento de um colombiano com quem jogara xadrez num encontro da colônia. O protagonista acaba descobrindo que o desaparecido e Gastón nutriam uma relação homossexual e as dificuldades de como a sociedade lida com as opções sexuais, tanto na Colômbia quanto na França, ocupam parte dos diálogos entre os dois, mesmo que de forma subterrânea, fazendo aflorar mais um aspecto relevante do livro.
Há também Susi, que trabalha como garçonete no restaurante, e que em noites alternadas, junto com Saskia, romena com quem o protagonista também desenvolve laços de amizade, prostitui-se num clube instalado numa barcaça, ao largo do Sena. Os dramas envolvendo os familiares destes personagens, que em geral estão em seus países de origem, também norteiam o panorama da solidão e do afastamento, por vezes voluntário, por outras nem tanto. Há ainda Vitória, por quem o narrador é apaixonado, com quem vivia em Madri e que o troca por um alemão, Joachim. Mesmo conhecendo muitas mulheres, é em Vitória que pensa, até libertar-se lenta e dolorosamente.
A relação entre a aparência de “cidade luz” e a podridão das profundezas aparece mais escancaradamente numa cena em que Salim vai conhecer os esgotos de Paris, levado por um amigo, e vendo nisto uma experiência de autoconhecimento:
É verdade que existe uma zona de realidade onde são vividos os contrários, onde vai parar o vômito e o excremento daquelas belas mulheres e daqueles dândis que, em cima, na cidade solar, representam os ideais do mundo, e veja bem, também aconteceu uma coisa curiosa e é que quando já fazia umas duas horas que estávamos andando por uma escavação, enquanto Addib me contava histórias, vimos uma luz ao fundo, o facho de uma lanterna indo de um lado para outro. Senti um medo paralisante, como se estivesse num planeta desconhecido e algo muito grande e peludo começasse a se mexer atrás de uma pedra, mas Addib acendeu e apagou um par de vezes a lanterna, segundo um código, e me disse, venha, você vai conhecer um amigo. Vi-o aproximar-se, e ao baixar o capuz do impermeável apareceu um africano chamado Moses. Oi, companheiro, gritou de longe, e deu um abraço em Addib, estavam contentes de se ver, pois, segundo disseram, não era fácil se encontrar, era preciso coincidir no limite de duas zonas.
É nas esferas mais ocultas que se realizam as relações humanas mais promissoras e verdadeiras de A síndrome de Ulisses.
Na última parte do livro, há uma entrevista com o escritor peruano Julio Jamón Ribeyro, que coloca um aspecto relevante que parece não ter uma solução muito clara, nem para o autor do livro nem para a maior parte dos artistas sul-americanos, africanos e asiáticos, que vivem bem na Europa, são reconhecidos e consagrados, porém sentem imensa saudade da terra natal e percebem que, passados 20, 30, 40 anos, este país anterior já é outra coisa. E no lugar da Europa em que estão, mesmo em Paris, são eternamente estrangeiros, seres sem pátria que vagam sem rumo ou objetivo.
Nas últimas páginas de A síndrome de Ulisses, vê-se que o narrador, agora com emprego novo e morando melhor, vivendo uma relação mais estável com Sabrina, segue a sina destes seus colegas de letras: a vida sem pátria e sem laços com o lugar que os acolheu, zumbis de suas terras e do mundo.
Deslizes na tradução
Dois fatores bastante importantes comprometem a leitura do livro: os erros tipográficos, ou de digitação, que chegam a dez (se não mais) e, o mais grave, erros grosseiros na tradução, que mesmo não havendo a possibilidade de se cotejar o texto original, demonstram que o tradutor pode conhecer com tranqüilidade o espanhol, mas não domina plenamente o português. Culpa do tradutor? De maneira alguma. Culpa das editoras, que, cada vez mais, pagam porcamente os tradutores e investem minimamente em revisão. Três exemplos: “Todos olharam surpresos para ela, uma noite com Sophie? Marisa, uma interiorana de olhos maliciosos, disse que esse prêmio era mais bem para ela, e todo mundo soltou uma gargalhada, e acrescentou que se o marido dela ganhasse, ela iria para o jantar junto com ele…” (p. 49/50) O que quer dizer este ‘mais bem’ é um mistério. Outro exemplo: “…devia morar em Le Blanc Mesnil e que estava indo para sua casa, e então o primeiro objetivo de nosso seguimento logo seria satisfeito”. (p. 141) Aqui, o narrador e seu amigo seguiam Gastón, ou seja, o termo ‘seguimento’ refere-se estranhamente ao ato de seguir. Último exemplo (apesar de haver muitos outros): “Quando ele se dispunha a falar chegou o garçom para anotar o pedido, então ordenamos duas cervejas, após o que ele disse…” (p. 156) Em português, ordenar quer dizer outra coisa.
Jorge Coli utilizou sua coluna Ponto de Fuga (Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 3/9/06) para ressaltar os absurdos erros de tradução na recente edição de Port Mungo, de Patrick McGrath, pela Companhia das Letras, tida como editora zelosa em seus projetos editoriais. Segundo Coli, além de traduções canhestras de vocabulário, na revisão foi feito um corte abrupto de expressões que quebram completamente o ritmo narrativo da obra original. Ou seja: ou a tradução no Brasil passa a ser encarada com seriedade, bem remunerada e criteriosamente revisada, por indivíduos que além o texto pronto em português tenham acesso aos originais e possam junto aos tradutores compor um produto final legível, ou vamos continuar na periferia do mundo editorial, publicando versões vexatórias de textos respeitados internacionalmente.