Longe da poesia tecnocrata

Não é só de poetas tecnocratas que vive a poesia brasileira. Graças a Deus
01/11/2001

Não é só de poetas tecnocratas que vive a poesia brasileira. Graças a Deus. Ainda existem poetas que usam a palavra como forma de poesia. O poeta Eduardo Alves da Costa escreveu certa vez, num poema dos anos 60: “O amigo não cabe num abraço/ nem a família/ no parco espaço da casa”. Hoje essa imagem poética pode traduzir o momento atual da tecnocracia do poema: Não cabe na poesia brasileira tanta manifestação medíocre com espaço garantido na chamada mídia cultural. Os tecnocratas do poema e alguns outros que se afirmam poetas são donos do próprio espaço, portanto dele fazem uso ao bel-prazer. Constrangimentos e confrarias à parte, existem ainda alguns poetas verdadeiros que estão escrevendo poemas longe da leviandade inconseqüente. Diante do quadro lastimável que se vê atualmente na poesia brasileira, o que dizer de Glauco Mattoso, lançando Panacéia (Nankin Editorial), um poeta acima de qualquer suspeita? Este não é poeta tecnocrata, nunca será. Este é um poeta da palavra que faz de sua série de sonetos uma absoluta lição de poema e de poesia. Glauco Mattoso diz: “Não me afasto da disciplina formal, sem a qual Camões não teria composto sua epopéia e Jerônimo não teria completado a Vulgata. Se Scarlatti escreveu 555 sonatas, ainda não passei dos quinhentos sonetos”. Glauco Mattoso é um poeta à parte na atual poesia do Brasil. Bem distante dos elogios gratuitos, ele vai construindo sua obra com a seriedade de um monge condenado à morte. Não há tempo para futilidades. Os dois primeiros versos de seu Soneto sintético observam: “De como a poesia é definida/ depende a trajetória do poeta”. Glauco é poesia demais para a paisagem árida do momento. Assim é também Nei Duclós, poeta nascido em Porto Alegre que vive em São Paulo e que está lançando No mar, veremos (Editora Globo), outro poeta distante da bajulação detestável. Mário Chamie observa na apresentação de No mar, veremos: “Nesse veremos (verbo ver e substantivo remos) está todo o sentido do destemor e do desafio que o homem e o poeta Nei Duclós nos ensina”. Chamie assinala, com razão, que a perícia do título do livro é coisa de uma percepção exímia de quem tem o domínio da idéia e das imagens penetrantes que nos quer passar. Um livro belíssimo que fará mal aos tecnocratas que têm seu espaço garantido na troca de louvores entre amigos. Duclós diz que a poesia, em primeiro lugar, é vocação — palavra que tem sua origem na latina vocare (que gera um chamado, uma convocação). “É a partir dessa graça, dessa virtude original, que o poeta desenvolve o seu ofício”, diz ele, observando: “Fazer poesia é instituir o poder da palavra num universo desagregador”. Duclós assegura que “a partir da clareza provocada pela poesia, o mundo se transforma. E é por isso que o perfil desse ofício está fundado na transformação”. Seu poema Ronda é feito de sensações que os tecnocratas da poesia e do poema devem desconhecer: “Sei que perdi o sol/ mas não me importo/ ele passou por um navio/ que não abordo”. Duclós é certeiro em suas palavras difíceis para o quadro atual da poesia brasileira:

“O trabalho poético não se restringe ao verso, ao poema, ou à composição do livro de poesia. Ele existe em toda as manifestações do poeta. Por isso a fonte da poesia é alimentada pela vocação, o suor e a ética — a vida não pode contrariar o ofício”. E nisso deve ser incluído o poeta mineiro Erorci Santana, que também vive em São Paulo, lançando um belo livro de poesia Maravilta e outros cantares (Alpharrabio Edições), em que revela uma paisagem poética nítida e inebriante, fazendo bom uso da palavra e do poema. Erorci também está longe dos holofotes da promoção e da autopromoção desonestas. Ele diz num poema: “Se a poesia está morta eu não sei/ Jaz no passeio, está inerte/cercada pela turba/ tem os clássicos sinais. Mas e daí?” Fosse este um país sério com jornalistas culturais idem — ressaltando-se as exceções raríssimas — este livro haveria de merecer o espaço dado injustamente aos aventureiros. Erorci Santana tem razão quando diz: “A perpetuação da poesia como objeto de culto e fonte de fruição estética ou a sobrevivência da mesma na poesia irá depender do resgate da cultura humanística, inclinação bem distante dos ditames do império da tecnocracia vigente neste mundo a caminho ou em plena androidização do gênero humano”. Lá no meio do Brasil, em Goiânia, vive o poeta Gabriel Nascente, que reuniu toda sua obra no volume A Torre de Babel (Editora Kelps). “Eu nunca escrevi um poema pensando em salvar a humanidade”, diz ele. Confessa que escreve para vencer a morte. “Questão de arcano, eis a tônica: poesia para salvar a poesia”. Por que livros assim passam quase esquecidos pelos tecnocratas da poesia e da mídia que se diz cultural? É o tal eixo Rio-São Paulo que ainda existe discriminador e preconceituoso. Isso só pode ocorrer num país pobre de idéias, com jornalismo tosco e literatura de grupos. As palavras de Gabriel Nascente soam como um grito: “Sou poeta no escuro, redator da comoção. Incendem no meu instrumento de trabalho a sensibilidade, a paixão e o sonho. Dessa matéria chego à tona da vida, elucidando o caos e montando mistérios para dar alma à poesia”. Claro que os tecnocratas da poesia podem zombar de manifestação assim sensível de um poeta que tem a palavra como revelação do sagrado. Gabriel Nascente tem certeza de que “a linguagem dos homens materializou-se no verso. Tanto que os dramaturgos, poetas e filósofos gregos utilizavam-se do verso para expor o ideário de suas inspirações”. Para melhor situar sua poesia reunida, o poeta recorre a Lucrécio: “Eu te procuro, ó deusa/ para que me ajudes a escrever/ o poema sobre a natureza das coisas”. Já o poeta mineiro Elias José, nascido em Guaxupé, onde vive, observa que “poesia na vida e nas artes é tudo que emociona, que nos leva ao espanto”. Mal sabe o poeta que esse tipo de sentimento hoje é questão proibida pelos tecnocratas da poesia brasileira. Elias José está lançando A dança das descobertas (Editora Geraes, de Belo Horizonte), um livro de poemas que tem a poesia como discurso absoluto. E para bem situar sua obra, ele abre o livro com palavras de Otávio Paz: “Valéry comparou a prosa com a marcha e a poesia com a dança. Daí que os arquétipos da prosa sejam o discurso e o relato, a especulação e a história. O poema, pelo contrário, apresenta-se como um círculo ou uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente e no qual o fim é também um principio que volta, se repete e recria”. Os poemas de Elias José são poemas de poeta de Minas, estando ele vivendo em Guaxupé ou em Lisboa, Rio de Janeiro ou em Moscou. Seguem aquela linguagem de seu livro memorável, O tempo, Camila, de 1974. Não há invenções desnecessárias nos poemas de Elias José. Há só poesia, esse crime explícito. O poeta é singelo: “Sem poesia a vida perderia a graça”, diz ele, candidamente rodeado pelas feras do infortúnio que ditam as regras nos suplementos tecnocratas da inconseqüência. É um poeta que revela sua poesia na elegia que escreveu a Carlos Drummond de Andrade: “Agora que já não contemplas as palavras/ nem delas careces/ estás livre de tudo, por certo agora/ tens uma vontade de cantar tão absoluta/ que calas repleto”. Outro poeta da palavra é o paraense João de Jesus Paes Loureiro, que vive em Belém e que está lançando Do coração e suas amarras (Escritura Editora), livro que é uma imensa manifestação poética na acepção mais correta da palavra. Paes Loureiro tem a poesia como “um sentimento produtor do conhecimento”. E mais: “Um modo de sentir de corpo inteiro. De corpo e alma”. Confessa, no entanto, não ter certezas que possam conceituar a poesia. O livro de Paes Loureiro, como um objeto de arte, já é por si só algo à parte com sua capa de couro em três tonalidades, costura dupla, corte dourado e papel tipo pergaminho impresso em verde e marrom com fita de marcação de página, dando ao volume um tom medieval. Esse cuidado faz parte da própria obra que é um longo poema de amor que invoca a mitologia grega, além de personagens históricos, índios brasileiros e também a natureza. No último poema do livro, Paes Loureiro escreve: “A poesia parta em fuga dos poemas/ palavras incendeiem dicionários/ Adão e Eva no leito da serpente/ celebrem a expulsão do paraíso”. Entre tantos outros poetas brasileiros que a tecnocracia dos suplementos esquecem, destaca-se, também, Sílvia Jacintho, que nasceu em São Paulo e vive no Rio de Janeiro, lançando o livro Chama (Massao Ohno Editor). Silvia Jachinto assegura que a poesia é um estado de consciência. Às vezes, imersa no ser, transborda no olhar, gestos, pensamentos, palavras. Outras, uma consciência conquistada, construída sobre a firme pedra da experiência — aprendizado através da dor”. Ela explica que seu livro é poesia do primeiro estado: primitiva e inconsciente. A poeta mergulha no erotismo como manifestação da vida em poemas de amor longe das facilidades reinantes; “A poesia afirma-se qual uma língua/ lambe, recupera, salva/ a abafada alma da gente, com garras/ raspadas sensuais, a poesia é selvagem/ não espera, brota, irrompe/ o íntimo com sua matéria bruta”. Apresentando Chama, Olga Savary diz que Sílvia Jachinto “ergue a palavra poética para transmitir viço, essência a nutrir aqueles que amam a mais verdadeira das belezas da vida: a Poesia”. O texto de Olga Savary já é um poema deste livro de poesia sobretudo digno. Não é sempre que se tem livro assim exuberante. Isso prova que felizmente existe ainda vida útil de poesia entre a mediocridade reinante devidamente amparada pela mídia chamada cultural e os tecnocratas da poesia que se endeusam a si próprios no próprio espaço de que dispõem nos suplementos. O Brasil é um país pobre, para não usar a palavra miserável. Pobre de idéias e de cultura e isso implica, sobretudo, no comportamento de um jornalismo que parece não ter compromisso algum com a história do país. Com a literatura do país. O poeta mineiro radicado em Brasília, Ronaldo Cagiano, é autor de um belo livro de poemas que tem o título Canção dentro da Noite. Na última página de sua obra, ele reproduziu palavras de Paul Celan que cabem bem aqui: “Ainda há canções a cantar além dos homens”. Que mais poderá ser dito?

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho