É difícil para um brasileiro sentir empatia diante das chorumelas narradas por um escritor norueguês como Karl Ove Knausgård. É aquela velha história, acho, de que a gente enxerga o sofrimento alheio com olhos semicerrados: o meu é sempre válido, já o do outro precisa ser muito bem justificado. O latino-americano parece ter um desconfiômetro afiado, com toda razão, e penetrar essa barreira é tarefa árdua. Depois das cerca de 3,6 mil páginas da hexalogia Minha luta, iniciada com o romance A morte do pai e concluída com O fim, dou meu braço a torcer: o norueguês conseguiu me sensibilizar. E também me irritou, arrebatou. Deixou-me boquiaberto, eufórico, entediado… Muito de tudo um pouco, em uma gigantesca história que trata abertamente de pessoas e acontecimentos reais.
A narrativa, que abrange todas as fases da vida do Karl Ove, é feita a partir da interpretação e lembranças do próprio autor. Ele afirma ter assumido um compromisso com a realidade ao começar essa jornada literária em 2008, uma década depois da morte de seu pai, mesmo ciente de que “a lembrança não é uma grandeza confiável ao longo da vida”. Quando questionado por um repórter (muito chato) da Vice sobre a natureza da série, na ocasião em que estava lançando o quarto livro nos Estados Unidos, afirmou: “Essa era a história da minha vida, e eu fodi tudo”. A declaração dá mais ou menos o tom de derrota que perpassa o imenso projeto literário, desenvolvido por meio de ninharias do cotidiano, relatos de porres homéricos e suas consequências, descrições da — tediosa e maravilhosa — vida em família, confissões íntimas (como extensos relatos sobre ejaculação precoce) e profundas reflexões a respeito de seu lugar no mundo.
Para dar um panorama geral da coisa toda, os títulos que compõem a série, além do já mencionado volume de abertura, são: Um outro amor, no qual Karl Ove conta como conheceu sua segunda esposa e mãe de seus três filhos, Linda Boström Knausgård; A ilha da infância, em que revisita principalmente seus medos de menino e a dura relação com o pai, homem rígido e distante, morto sem nenhum resquício da suposta dignidade que sustentou em vida; Uma temporada no escuro, de quando tinha 18 anos e foi dar aulas em uma vila ao norte na Noruega, em uma experiência marcada por sua inaptidão social e desejos bizarros; e A descoberta da escrita, onde relata uma maioridade turbulenta, repleta de acontecimentos vergonhosos e inveja, muita bebedeira, e seu início difícil no trato com as palavras — uma de suas grandes produções da época, quando estudou na escola de escrita Skrivekustakademiet, é um poema que preenche um pouco mais de uma página inteira com a palavra BOCETA, assim toda em maiúsculas.
Suicídio simbólico
No sexto livro, O fim, Karl Ove faz uma espécie de balanço dos principais acontecimentos de sua vida desde a publicação do primeiro volume. O assunto central parece ser as ameaças jurídicas que sofreu por parte de Gunnar, seu tio, devido ao teor do livro que abre a série, no qual ele narra em detalhes a morte de seu pai — que tinha se entregado ao álcool e foi encontrado todo estropiado, morto em meio às garrafas, na sala da casa da mãe. A visão do homem naquele estado, o mesmo que por tanto tempo lhe meteu medo, parece ter sido a faísca para que o norueguês passasse sua própria vida a limpo na série Minha luta.
Além de dizer que Karl Ove mentiu sobre as circunstâncias da morte do pai, o tio exigia que o nome de seu irmão não fosse exposto. A partir daí, a vida do autor acaba cercada por advogados, ameaças e tensões. Essa implicância, por mais incômoda que tenha sido a nível pessoal, desencadeia as principais reflexões de O fim — que é muito sobre identidade, linguagem e o papel do escritor. Para o norueguês, contar a história de seu pai — com todos os detalhes sórdidos — era um direito, assim como narrar as verdades de sua vida se tornou uma missão:
Meu pai bebeu até morrer, não era assim que devia ser, isso precisa ser escondido. Meu coração ardeu por outra, não era assim que devia ser, isso precisa ser escondido. Mas esse foi meu pai e esse foi meu coração. Eu não devia escrever essas coisas, porque as consequências não atingem somente a mim, mas também a outras pessoas. Ao mesmo tempo, essa é a verdade. Para escrever dessa forma é preciso ser livre, e para ser livre é preciso abandonar a consideração.
É o famoso “doa a quem doer”. Ao parágrafo acima dá para adicionar um trecho ainda mais radical, disponível na sequência, que evidencia como esse projeto literário parece ter sido uma espécie de suicídio simbólico do autor: como se ele tivesse abandonado algumas das principais regras do decoro social para renascer, ou talvez residir imortal, nas páginas dos livros. Pode soar piegas, mas esse romantismo meio tacanho combina com a visão que Karl Ove tem da vida — como quando diz a Geir Angell que é um “engenheiro da alma”, meio em tom de brincadeira, e seu melhor amigo retruca: “Eu diria que você está mais para um lixeiro da alma”. Quando esse lixeiro da alma abre o coração a valer, a coisa sai assim:
A verdade era que eu, ao me sentar para escrever esse romance, não tinha nada a perder. Foi por isso que o escrevi. Eu não estava apenas frustrado como às vezes sentem-se as pessoas que levam a vida de pais de crianças pequenas que assumem uma série de deveres e precisam renunciar a si mesmas, eu me sentia infeliz, infeliz como eu nunca tinha me sentido antes, e totalmente sozinho.
Vale lembrar que Karl Ove encara a série Minha luta como sendo apenas um único livro, mesmo que dividido em seis partes, e que seus trabalhos posteriores — como a coletânea de ensaios In the land of the Cyclops — não foram muito bem recebidos pela crítica. Pelo visto, ele próprio estabeleceu um patamar muito alto. Dá para pensar nos Los Hermanos e sua Ana Júlia, talvez, com o perigo de — além de estar sendo maldoso com o norueguês — irritar a seita de seguidores da banda ou despertar a fúria de Marcelo Camelo.
Linguagem e nazismo
As polêmicas cercam Karl Ove desde A morte do pai, então parece que não teria uma maneira mais adequada de encerrar a série do que produzindo um ensaio de mais de 250 páginas sobre nazismo no último livro. Não é uma provocação gratuita, mas não deixa de ser um movimento ousado (arriscado? bizarro?). Apesar de que, pensando bem, para quem já tinha perdido contato com pelo menos metade da família por causa da literatura a decisão de repassar a vida de Adolf Hitler, autor de um livro que é “símbolo da maldade humana”, conforme o norueguês o define, talvez não seja tão radical.
O Führer destilou todo seu ódio e delírios de grandeza em uma obra chamada, voilà, Minha luta (1925). Essa é a “brincadeira”, não que tenha alguma graça. Mas tem, sim, bastante sentido dentro da proposta de Karl Ove: discutir o poder da linguagem e formação de identidade. Para isso, o autor visita a infância e juventude de Hitler por meio de diversas biografias e, com todo o risco que essa definição acarreta, tenta “humanizar” o louco do Terceiro Reich. Não se trata, em momento algum, de defendê-lo.
Ao narrar a trajetória de Hitler, da infância e juventude miseráveis à ascensão como líder do povo, passando por sua frustrada carreira como pintor de quadros, Karl Ove mostra como o eu megalomaníaco do alemão, com contundentes discursos a respeito de soberania e superação, foi capaz de forjar uma identidade para seus iguais à época, criando um forte nós contra inimigos em comum, eles — os judeus, principalmente, que eram os adversários por excelência dentro da doente mitologia nazista. Isso mostra o poder sinistro das palavras. “A linguagem é a humanidade”, afinal, segundo Karl Ove, e por meio dela é possível tanto conferir esperança à desesperança, valor àquilo que não tem valor, quanto arquitetar o Holocausto.
Outro ponto do ensaio é que, para o norueguês, Hitler não foi sempre o demônio encarnado. Houve uma época, quando jovem, que ele não passava de um menino miserável e, sem nenhum trato social, sonhava em se expressar profissionalmente por meio da pintura. Deu tudo errado. É somente essa inocência prévia de Hitler que “pode dar o devido peso à culpa” dos horrores que ele perpetrou mais tarde. Se Hitler sempre tivesse sido um monstro, afinal, o caminho que trilhou seria somente natural.
O mais sombrio, e aqui a coisa fica meio estranha, é quando Knausgård resolve fazer uma aproximação direta de sua vida com a de Hitler. O sentido dessa comparação dentro da narrativa parece ser o de expor sua própria personalidade — e, quem sabe, punir ou julgar a si mesmo sem piedade usando um recurso literário estrambólico; o que não seria de todo estranho, já que Geir Angell, melhor amigo de Karl Ove, diz que o norueguês “tem a autoimagem mais distorcida” que ele já encontrou em toda vida. Lá vai:
A juventude de Hitler se parece com a minha, a paixão à distância, o ímpeto desesperado de tornar-se grandioso, de libertar-se a si mesmo, o amor que tinha pela mãe, o ódio que tinha pelo pai, o uso da arte como um aniquilador do eu e como um lugar para todos os grandes sentimentos. Os problemas em relação a estabelecer laços com outras pessoas, a idealização e o medo das mulheres, a pudicícia, o anseio pela pureza.
Realidade forjada
Para quem afirma ter começado um projeto literário sem nada a perder, até aqui não há nenhuma grande surpresa. As colocações mais impactantes de Karl Ove são brutalmente diretas, até mesmo absurdas, com o objetivo — parece — de expor o que há de mais podre dentro de si mesmo. Neste momento atual da literatura, em que os autores parecem todos muito muito empáticos, de boníssima índole, preocupadíssimos com o bem-estar da civilização e os rumos do planeta Terra, não vou mentir: a forma doentia que o norueguês se expõe, como se fosse feito de carne, osso e ódio, é quase um alívio. Um respiro em meio à epidemia de festejados bastiões da moral.
É difícil definir quando começa e acaba o personagem, se é que há personagem, forjado para o romance. Nesse trabalho detetivesco, se é que faz algum sentido, o único recurso à disposição do leitor são as palavras do próprio autor, para o qual “um abraço é uma abominação, um tapa no ombro ou nas costas é uma ameaça”. Ele não mede esforços para soar repugnante quando quer, se é que vale o julgamento, como quando expõe seus sentimentos em relação à bebida:
Ah, eu adorava beber.
Adorava.
O anseio por beber surgia apenas quando eu já tinha bebido um pouco, era como se eu me lembrasse de como era, e me desse conta do que eu realmente desejava, que era beber copiosamente, beber até perder o juízo, a consciência, tão fundo na merda quanto possível. Meu desejo era beber para esquecer minha casa e minhas coisas, beber para esquecer minha família e meus amigos, beber para esquecer tudo aquilo que eu amava e queria bem.
Trechos assim evidenciam a existência de alguém meio quebrado — e que se reconhece como tal, fique claro, não há ninguém brincando de santo ou coitado. A violência desses impulsos, Karl Ove explica, parece ter a mesma origem do que o leva à escrita:
A vontade de beber até cair era a vontade de fugir de tudo por algumas horas, e a vontade de escrever coisas incríveis, coisas realmente únicas, coisas de uma beleza celestial, fazia parte da mesma tendência.
É difícil cair em interpretações psicológicas do personagem, e isso talvez nem seja o papel de um texto sobre uma obra de (auto)ficção, mas não dá para deixar de notar como certos momentos são como cacos de um ser humano destruído.
A experiência fica mais divertida ao se imaginar: e se tudo isso não passar de uma inteligente manobra literária que, ao se afirmar como descrição fiel da realidade, dá potência máxima à narrativa? Seja como for, “descrever o mundo é criar a realidade”, diz o autor. E de personagem, não dá para negar, todo mundo na “vida real” tem um pouco (ou muito). Que diferença faz, afinal?
Força da angústia
Até onde é possível notar, o suicídio simbólico do Karl Ove foi bem-sucedido. Por mais que existam momentos em que ele demonstre todo amor pelos filhos (Vanja, Heide e o pequeno John) e tente se reconciliar com sua esposa, Linda, de quem não está mais junto agora, sobressaem a desolação e um tom quase maldoso, sempre autoconsciente, próprio de alguém atormentado — foi este o recorte escolhido para este texto, acho que deu para notar.
É claro que a prosa tem seus momentos singelos, normalmente quando Karl Ove está acompanhado somente de seu inseparável cigarro, e o que o autor faz não é somente uma exposição de seus podres. Ao refletir sobre os demônios que afligem sua mulher, por exemplo, que é bipolar (oscila entre a letargia, incapaz de sair da cama ou se relacionar com os filhos, e o comportamento maníaco, quando deseja resolver a vida de um dia para o outro), o autor entrega passagens deste tipo:
A angústia devora as pessoas de dentro para fora, é maior do que qualquer um de nós, uma coisa monstruosa, impossível de aplacar, e ela devora também os relacionamentos, porque a única coisa que quer é que todos passem o tempo inteiro muito juntos e muito próximos.
Não é difícil notar que ele não está falando exclusivamente de Linda — ela que, aliás, fez seu próprio relato de como é conviver com um transtorno mental no romance A pequena outubrista, sobre o qual escrevi no Rascunho de março de 2021. Juntando o teor desses dois livros, me vem à mente agora: que casal! Não é muito chocante, com o risco de soar como a Sonia Abrão, o fato de estarem separados atualmente.
O que parece restar, nessa queda de braço entre a podridão e a esperança, é o registro de um Karl Ove literário, não mais humano, que atingiu o objetivo de se livrar de tudo que o prendia ao escrever a série Minha luta — mesmo que ele considere “um experimento malsucedido, porque nunca estive sequer perto de dizer o que eu realmente queria dizer ou de descrever o que eu realmente vi”.
Na lógica do autor, que afirma ter exagerado, acrescentado, omitido fatos e não compreendido muita coisa de sua própria vida: quanto mais o texto machuca, mais verdadeiro é. Fato é que, após essa longa jornada, Karl Ove fez o que queria — pôs o nome real do pai no papel, com todo simbolismo que isso carrega, com todos seus próprios demônios. Uma expurgação literária, com a bênção de Kai Åge Knausgård.