Alguns livros deveriam vir com um aviso na sobrecapa, ou pelo menos com um recado na orelha: “Atenção, incauto leitor! Se você gosta de trabalhar com a cabeça e preencher os espaços vazios que o autor deixou, deleite-se com esta obra! Se não gosta, vá ler Paulo Coelho, Sidney Sheldon ou coisa que o valha.” Seria uma maneira bacana de encorajar quem escreve bem, os escritores que colocam o leitor dentro do livro, e afastar os néscios que acham Dan Brown um gênio literário. Afinal, livros comerciais (que podem ser best sellers ou não) servem apenas para descansar o cérebro. Como a televisão: você pega algo para se distrair e não pensar.
A opção do não-pensamento decididamente não foi a escolhida por Carlos Eduardo de Magalhães, autor paulistano que em 2005 lançou dois trabalhos, Dora e O primeiro inimigo. Em ambos os casos, mas principalmente em Dora, Magalhães deixa lacunas abertas para que o leitor vá encaixando, com a sua imaginação, os pedaços que faltam à história das personagens. Apenas isso já justificaria a mensagem no início do texto. Magalhães não deixa a leitura barata, e são necessários atenção e trabalho para poder aproveitar melhor o que ele tem a dizer. Mas o trabalho é recompensador, e terminamos o livro satisfeitos com o tempo empregado.
Dora conta a história de uma mulher chamada Dora. Mas a história não é contada assim: Dora nasceu, Dora cresceu, Dora se apaixonou, etc. Não. Para contar a história de Dora, Magalhães a cerca de vários personagens e faz cada um contar um pedaço da sua história e em que ponto ela entrou na vida deles. Assim temos um quebra-cabeça com algumas peças faltando e que nos dá o retrato de quem é Dora. E como são vários personagens, de várias classes sociais, temos diversos tons de voz conversando conosco, sem que eles entrem em conflito. O autor não mostra hesitação no emprego desses tons diversos, e consegue com habilidade mostrar que Dora transitou por diversos estratos da sociedade ao longo de sua vida.
O mais interessante do livro é justamente este trabalho de montar um personagem a partir de diferentes pontos de vista. Com certeza não é uma idéia original e deve ter sido usada antes (confesso aqui que não me lembro de ninguém, falha minha), mas mesmo as idéias que foram utilizadas antes, se bem empregadas, produzem bons trabalhos. Em alguns momentos, Magalhães escreve na primeira pessoa, em outros na terceira, em todos os casos não utiliza as marcações de diálogo quando estes acontecem, deixando-nos um pouco confusos ao tentar descobrir quando se fala ou quando se pensa nos textos em primeira pessoa. Independentemente da situação, temos sempre novos detalhes da vida de Dora para acrescentar ao quadro geral. Pode até parecer com um namoro. Sentimo-nos atraídos por alguma coisa naquela pessoa e, à medida que convivemos com ela, vamos descobrindo novas coisas, algumas agradáveis e outras nem tanto. Mas todas partes da pessoa amada. Nós já sabemos quem é, mas o quadro só se amplia a cada dia.
Menos lacunas
O outro livro de Magalhães, O primeiro inimigo, deixa menos lacunas para o leitor preencher, mas também tem lá os seus espaços para completar. Nele, existe um eixo principal composto pelas três gerações masculinas de uma família: avô, pai e filho. O neto conta a sua história em primeira pessoa, história que vai sendo entrecortada pela história do avô. Só que a história do avô é narrada pelo seu melhor amigo, e não pelo neto. E da junção dessas duas histórias é que conseguimos ter algumas noções da história do pai. Novamente, um trabalho de construção mental para termos o quadro completo que o autor quer nos mostrar.
A história de O primeiro inimigo se passa em um período bastante longo da história brasileira, indo do início do século 20 até o período imediatamente posterior ao fim da última ditadura no Brasil. Ao longo desse tempo, conhecemos Antônio, o avô; Manoel, seu melhor amigo; Letícia, mulher que pelos dois foi amada; Luís Carlos, o pai; sua esposa; Ernesto, o filho; e o envolvimento de todos esses personagens com os principais fatos políticos e históricos, não só brasileiros como também internacionais. Antônio e Manoel, anarquistas desde a adolescência, não hesitam em empunhar armas para combater com as brigadas internacionais contra Franco, na Espanha. Batalha perdida, continuam no teatro europeu para lutar contra outros fascistas, dessa vez com mais sucesso. Essa base de formação molda todo o resto da vida dos dois personagens, com conseqüências para todos os seus herdeiros, não importando quão longe no tempo eles estejam.
Ernesto, o protagonista, é um homem atormentado e, à medida que acompanhamos o desenrolar da trama, vemos que todos os seus tormentos têm uma razão fundamentada na história de sua família. E toda a violência de Ernesto — até certo ponto, O primeiro inimigo é um livro violento — desemboca contra ele próprio, em muitos casos. E quanto mais conhecimento tem Ernesto, mais a violência que está guardada dentro de si aflora, com conseqüências não muito agradáveis para quem está ao redor.
Uma prova da habilidade do autor está no fato de pensarmos ser a trama do livro uma em seu início e, no entanto, vamos descobrindo que a história é outra, muito mais abrangente e complexa que um simples “roubar a namorada do melhor amigo”. Esse item está presente, mas ele serve apenas para demonstrar o caráter de Ernesto e quais as suas motivações, mais do que para provocar um draminha pessoal, causado pela culpa de ter se apaixonado por uma pessoa proibida.
Além do drama de Ernesto, escutamos a história de Antônio narrada pela voz de Manoel, e temos ali duas tramas que correm de maneira paralela no livro, sem nunca se chocarem de frente. Magalhães consegue manter o suspense até as páginas finais do livro, quando então são revelados os pontos de contato entre os diversos personagens e a história do país. E, assim como em Dora, ainda que em alguns momentos fiquemos confusos com o misturar-se de pontos de vista e narrativas diferentes, não temos dúvidas quanto a que parte pertence a quem.
Magalhães escreve bem, e isso por si só já é um mérito. Mas além de escrever bem ele consegue escrever e provocar, deixar espaços para o leitor. Magalhães não entrega o prato pronto, ele exige do leitor um esforço que com certeza gera recompensa ao final, um outro mérito. Esperamos que ele não sucumba à fórmula dos pratos de fácil digestão, ops, dos livros de fácil leitura, e continue produzindo material que nos inquiete, provoque e incomode.