Livros, leitura e literatura no Brasil

Os desafios de se propagar a cultura do livro em um país que resiste à leitura e tem um sistema educacional dos mais frágeis
Ilustração: Dê Almeida
30/04/2020

Estas duas décadas do lançamento de Rascunho coincidem com os 520 anos anos da chegada de Pedro Alvares Cabral ao que hoje se chama Brasil e que, naqueles idos de antanho, era a singela Ilha de Vera Cruz.

O registro da chegada de Cabral às praias baianas foi lavrado por escrito por Pero Vaz de Caminha, em carta ao rei de Portugal. Suponhamos que pelos reais olhos de D. Manuel, ou por olhos terceirizados, a carta tenha sido lida.

Será?

Se sim, o Brasil foi objeto de escrita e de leitura tão logo europeus tomaram conhecimento de sua existência.

Mas, escrita e leitura parece que não se aclimataram muito bem aos trópicos. Tampouco fizeram parte do pacote de presentes (carapuças, contas coloridas, crucifixos) com que os portugueses mimosearam os nativos nos primeiros encontos, recebendo em troca arcos e flechas.

Anchieta
Um quadro de 1901 do pintor brasileiro Benedito Calixto (1853-1927) — Poema à Virgem Maria — celebra a cena de José de Anchieta escrevendo nas areias de Iperoig os versos que, memorizados, integram sua vasta obra poética. No quadro, Anchieta, de frente para o mar, tem às suas costas um pequeno grupo de nativos — os tamoios dos quais era refém.

A cena imaginada por Benedito Calixto em seu belo quadro bem pode representar os desencontros entre nativos e colonizadores no que se refere a práticas letradas. O proprio José de Anchieta, integrante da delegação jesuítica chegada quase meio século depois (1553) de Portugal ter recebido a carta de Caminha, tinha entre suas funções ensinar a ler e a escrever, como parte do projeto de conversão dos nativos. Ao que parece, a tarefa o entusiasmava: “Os filhos dos índios aprendem com nossos padres a ler e escrever, contar, cantar e falar português e tudo tomam mui bem.” (A província do Brasil, 1585, 1946, RJ, Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Saúde.)

Mas, apesar dos parcos resultados, o projeto jesuítico foi o único esforço ao tempo do Brasil Colônia a interessar-se pela difusão da escrita e da leitura. Expulsos os jesuítas de Portugal e de suas colônias em 1759, leitura e escrita não fizeram mais parte de projetos de colonização.

Não obstante isso, quer seja por emulação de poetas contemporâneos europeus, quer seja por também alimentarem um projeto político, alguns poemas brasileiros do século 18 mencionam leitura e leitores. Tomás Antônio Gonzaga, por exemplo, ao descrever para Marília a futura vida doméstica de que desfrutariam, inclui a leitura feminina entre as delícias que promete à amada:

Enquanto revolver os meus consultos
Tu me farás gostosa companhia
Lendo os fastos da sábia mestra História
E os cantos da poesia.

Nas expecativas de Gonzaga, a capacidade leitora da pastorinha Marília ultrapassa a mera decodificacão do texto escrito. Segundo seu apaixonado, a mocinha mineira seria capaz de elaborar juízos críticos sobre o que lia:

Lerás em voz alta a imagem bela
eu, vendo que lhe das o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo.

No século seguinte — o 19 —, no entanto, parece que nem o básico “bê a bá” dos jesuítas e tampouco as práticas leitoras que Gonzaga atribui à sua Marília se disseminaram.

Nosso bem amado Machadinho (1839-1908), em lúcida crônica de março de 1862, no Diário do Rio de Janeiro, registra e lamenta que “poucos livros se publicam e ainda menos se leem. Aprecia-se muito a leitura superficial e palhenta do mal travado e bem acidentado romance, mas não passa daí o pecúlio literário do povo”.

Pesquisas
Meio milênio depois dos versos escritos nas areias do litoral paulista e sistematicamente apagados pelas ondas, parece que projetos de alfabetização/ letramento no Brasil nunca dão muito certo. É, ao menos, o que registram pesquisas contemporâneas desenvolvidas por aqui.

Tais pesquisas levantam números muito pouco otimistas. Nas últimas avaliações do Programa Internacional de Avaliação e Estudantes (Pisa), por exemplo, o Brasil teve resultados péssimos: em 2015 classificou-se em 59o lugar entre os 70 países pesquisados e em 2018 ficou em 57o lugar entre os 79 países participantes da pesquisa. Um total de 3.132.463 jovens, em 2018, correspondia à fração da população brasileira submetida ao Pisa.

Estes desesperançosos números, divulgados no Brasil pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), dialogam bem com os números resultantes de pesquisa pilotada pelo setor produtivo.

Anualmente a Câmara Brasileira do Livro (CBL), em parceria com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE/USP) e com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), investiga a producão livresca nacional. Nos dois últimos anos, a produção de livros, no Brasil, expressa-se pelos os seguites números:

20172018
Títulos48.87946.828

Discriminando os dados do levantamento CBL/Fipe/SNEL, podem-se distribuir os números acima por alguns — digamos — “gêneros”. O resultado da filtragem aponta predominância absoluta de livros didáticos cujo consumo, além de majoritariamente obrigatório, é também majoritariamente financiado pelo governo.

Livros didáticos
20172018
TítulosExemplaresTítulosExemplares
11.060192.533.36510.726175.204.543

Os números revelam encolhimento da produção livresca. Logo abaixo do gênero “livro didático”, estão os livros religiosos, cuja distribuição pelas categorias “títulos” e “exemplares”, resulta na seguinte tabela:

Livros religiosos
20172018
TítulosExemplaresTítulosExemplares
6.73170.943.8586.45168.954.643

De novo, decréscimo da produção.

Mas, se com uma certa dose de malícia, retornarmos ao projeto educacional dos jesuítas, parece que o parentesco entre escola e religião deu frutos: livros didáticos e religiosos são o que mais se lê em nossa terra.

Vem a seguir o gênero “autoajuda”, para alguns, parente do gênero “religioso” e cuja produção registra números expressivos, ainda que em queda:

Livros de autoajuda (exemplares)
20172018
20.296.89817.253.098

Se passarmos agora para o gênero “literatura” — sempre trabalhando com número de exemplares produzidos — em suas vertentes “literatura adulta”, “juvenil”, “infantil” e a recém chegada literatura para “jovens adultos”, o encolhimento da produção também se manifesta:

Literatura (exemplares)
20172018
Adulta32.244.23626.403.505
Juvenil 9.692.825 6.579.692
Infantil15.990.12913.538.265
Jovem adulto 2.267.296
Total57.927.19048.788.758

Projetos
Cruzando estes números com os registrados pelo IBGE, relativos a 2018, encontramos, de outro ponto de vista, um quadro talvez um pouco mais desolador.

Dos duzentos e poucos milhões de brasileiros, há por volta de 168 milhões aptos a se interessarem pelos quase 350 milhões de exemplares produzidos, o que representa pouco mais de um livro por cidadão.

Nao faltam, no entanto, ou pelo menos não faltaram até 2018, projetos e providências de incentivo à leitura. Em 1981, funda-se a Associação de Leitura do Brasil (ALB); em 1992, o Progama Nacional de Incentivo à Leitura (Proler); em 2005, estabelece-se um Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL); e em 2018 é votada uma Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) .

Muito embora o número de bibliotecas públicas pareça não contemplar os 5 mil e poucos municípios brasileiros, houve aumento significativo de seu número e também significativo incremento de livros disponíveis em escolas, além de projetos de distribuição de livros — independentemente dos didáticos — a escolares.

Tudo isso, no entanto, talvez não represente aumento do número de leitores. Nada disso parece alterar significativamente práticas leitoras de brasileiras e brasileiros. Ao menos as práticas leitoras mais convencionais, que se dão entre material impresso, mãos, olhos e cérebro de seres humanos.

Artigo recente de Marco Lucchesi, grande poeta e atualmente presidente da Academia Brasileira de Letras, comenta e lamenta este estado de coisas:

Existe uma crise impressionante. São mais de 100 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, com um grande prejuízo em sua capaciddade de leitura proprimente dita. Mas você tem outros números que impressionam: segundo o último Censo do IBGE (2010), 44% da população não praticam a leitura. E temos uma média por pessoa de apenas dois livros lidos anualmente, já contando com os didáticos. Enquanto isso, na França, a média são dez livros. Temos pouco mais de seis mil bibliotecas no Brasil. Na Rússia são 40 mil. Nos EUA, 116 mil.

E o poeta tem razão… particularmente no que se refere à leitura de material impresso.

Novos tempos
Material impresso, porém, agora, ganhou um irmão caçula. O material digital que nos desafia com uma pergunta: “Que papel desempenham as redes sociais e o mundo digital no panorama brasileiro da leitura?”

Na paisagem brasileira, em salas de aula, restaurantes e calçadas, salas de espera e cabeleireiros pululam celulares. Em metrôs, ônibus, rodoviárias e aeroportos, as mãos e os olhos que outrora folheavam (ainda que às vezes meio distraidamente) livros e revistas, hoje dedilham celulares. Às vezes dedilham silenciosamente, mas às vezes sāo tão ruidosos que os demais ocupantes do recinto ficam sabendo que o moço de gravata vermelha não vai ao dentista hoje e que na casa da moça de terninho verde vai ter bife na janta — e que a sogra vai jantar com eles. Enquanto isso, outros — muitos outros — leem mensagens, posts e similares de textos escritos, muitas vezes escritos na linguagem especifica do suporte: você é vc, não é ñ e por aí vai.

Talvez se trate de outra língua. Mas tem quem leia nela. Muita gente. E goste.

Para além da leitura rápida do celular, outros aparelhos, ainda que maiores, como Kindle, Kobo, Ipads e engenhocas similares permitem leituras mais complexas. Como a que se espera que se faça de contos, romances e poemas. Há sites especializados que favorecem acesso gratuito a todos os clássicos. Nosso Machado de Assis, por exemplo, está disponível, gratuitamente, pelo menos em três excelentes endereços digitais: http://machadodeassis.ufsc.br, http://machadodeassis.fflch.usp.br e http://mchadodeassis.net.

Em muitos sites, os textos — disponibilizados a partir de fontes cuidadosamente escolhidas — oferecem algumas facilidades ao leitor, através de notas — na realildade, hiperlinks — que o informam de tudo aquilo que, antes do mundo digital, exigiria a consulta a outros materiais.

Ainda em relação ao Velho Bruxo, edição recente da Unicamp (da qual, confesso, participei) do conto O espelho acopla o impresso ao digital (http://www.editoraunicamp.com.br).

O livro impresso permite baixar o aplicativo num celular (por enquanto, “funciona” apenas com Android ), onde há efeitos de realidade virtual, a partir dos quais o ambiente em que se passa a história e o ambiente em que é lido o conto podem se sobrepor. O aplicativo permite ainda tradução para Braille e para a Língua Brasileira de Sinais, o que amplia consideravelmente o alcance da edição, democratizando práticas de leitura de qualidade por diferentes segmentos da população.

Mas, nem todo o universo da leitura digital é sofisticado como em O espelho editado pela Unicamp. Mas mesmo sem a sofisticação de múltiplas linguagens, cada vez mais, autores contemporaâneos lançam e vendem suas obras em dois formatos: impresso e digital. Geralmente o formato digital é um pouco — só um pouco (muito pouco) — mais barato.

E, pasmem, colegas papelófilos e telafóbicos, a leitura de um objeto digital pode estar criando leitores mais sofisticados. Leitores que ao lado da leitura linear, ao longo da qual as várias unidades de um texto se sucedem, têm acesso simultâneo a diferentes unidades do texto, quer se trate de unidades verbais, visuais e/ou sonoras. Isso sem mencionar a possibilidade de o leitor escolher tamanho e tipo de fonte, espaçamento entre linhas e outros luxos…

Em livros digitais, notas de rodapé, para muitos leitores, são consideradas mais comfortáveis do que suas ancestrais impressas que, em geral, vêm em letras menores e exigem movimentação de páginas. Livros digitais também permitem — como os impressos — que o leitor selecione e comente trechos. Cabe a ele — leitor — franquear ou não a outros leitores, a leitura de sua seleção e de seus comentários.

Digitais: ainda incipientes
Mas nem só de clássicos vive o leitor digital. E nem sempre esse leitor é um adulto interessado em clássicos ou obras canônicas. Talvez livros infantis sejam mais credenciados para se discutir o livro digital.

Participando como protagonista de um projeto de difusão de boas práticas leitoras, o grupo Itaú, através do projeto Leia para uma criança, disponibiliza livros digitais de alta qualidade (http://euleioparaumacriança.com.br).

O acervo destes livros — que a cada dois anos recebe dois novos títulos — vale-se de (quase) tudo que a modernidade digital oferece para situações de leitura online: bons textos, entrevista com autores, textos ilustrados, ilustrações móveis…

Beleza!

Mas, mesmo com tais promessas de modernidade, o livro digital ainda é um — digamos — clandestino na paisagem de materiais de leitura brasileiros disponíveis.

Dados de 2016 (http://cbl.org.br/site/wp-content/uploads/2017/08/Apresentacao-Censo-do-Livro-Digital-_-25.8.pdf ) registram que apenas 1,09% do mercado editorial é representado por livros digitais, que apenas 37% das editoras nacionais produzem livros digitais.

Quando traduzidos em efetivo material de leitura, tais números representam 9.483 novos ISBNs e 2.751.630 exemplares. Tais cifras — particularmente os quase três milhões de exemplares — dialogam bem com a informação de que em 2019 o Itaú recebeu e atendeu a 3,6 milhões de solicitações de livros de seu projeto.

Sabendo-se que os livros digitais do Itaú podem ser classificados como infantis, e que dos livros digitais mencionados na pesquisa da CBL, 87% são classificados como “obras gerais, científicos, técnicos e profissionais”, parece confirmar-se o protagonismo infantil no que diz respeito ao livro literário digital.

Seria este mais um aspecto em que a literatura infantil se antecipa à sua irmã mais velha, a literatura adulta .

Será?

Acho que sim, mas tem quem não ache…

E entre os que acham e os que desacham, fiquemos, para fechar este texto, com o mestre Antonio Candido, cujas reflexões sobre leitura literária apontam sua importância e cabem bem tanto a livros digitais como a livros impressos:

As produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, saisfazem necessidades básicas do ser humano (…) ela é uma necessidade universal imperiosa (…) que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante (Antonio Candido. O direito à literatura).

Marisa Lajolo

É pesquisadora, crítica literária, autora de literatura juvenil e professora universitária. Lecionou na Unicamp e, atualmente, é professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em 2009, em parceria com João Luís Ceccantini, organizou a obra Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil, eleita pelo prêmio Jabuti o melhor livro de 2009 na categoria não ficção. Em 2012, seu livro Gonçalves Dias, o poeta do exílio foi premiado pela ABL. Acaba de lançar, em parceria com Regina Zilberman, A formação da leitura no Brasil (Unesp).

Rascunho