Livro, objeto, literatura

"Bibliomania", de Marisa M. Deaecto e Lincoln Secco, é uma defesa apaixonada do livro impresso
Marisa M. Deacto, autora de “Bibliomania”
25/02/2017

Sempre achei as estantes repletas de livros uma das coisas mais bonitas do mundo. Escrevendo este texto, tenho a minha aqui atrás. No canto superior esquerdo — tendo como referência quem a observa —, muita coisa de literatura brasileira, especialmente contemporânea. Abaixo, não ficção, com destaque para as narrativas “reais”, muitas apostilas da época de faculdade da minha mulher e um painel de fotos encaixotado que não penduramos na parede desde que nos mudamos para o apartamento, há quase dois anos. Do lado direito, por sua vez, os livros sobre cerveja e as histórias em quadrinhos estão próximos ao teto, enquanto as prateleiras do meio abrigam os livros de literatura estrangeira e alguns volumes de bolso em um nicho específico. Próximo ao piso, livros técnicos e de não ficção não narrativa, digamos assim.

A estante, que pega toda uma parede do meu escritório, está bastante zoneada, na verdade. Dentro de cada categoria, não há uma lógica para a disposição dos livros e títulos de um mesmo autor podem ser encontrados em lugares um tanto distantes. Ontem mesmo, por exemplo, peguei o A resistência, do Julián Fuks, na segunda prateleira de baixo para cima, na parte da frente — cada nicho tem duas fileiras de livros: a dianteira e a traseira, que, evidentemente, acaba ficando escondida —, e sei que tenho o Procura do romance, resenhei para algum canto, mas não faço ideia de onde exatamente ele está, só sei que não fazia par com quem deveria.

Essa pequena zona me incomoda um tanto, confesso. Preferia ter um espaço no qual praticamente metade dos livros não ficasse escondida. Queria organizar um tanto melhor a disposição dos títulos. Queria ter mais apuro na seleção — muita coisa aqui atrás provavelmente jamais será sequer aberta. Queria que as prateleiras fossem mais limpas (apesar de eu ser o único culpado pelo pó que nelas se acumula e me faz espirrar quando o tempo vira de uma hora para outra). Em todo caso, quando olho para essa estante ou a mostro para alguém, sinto bastante orgulho.

Sei lá por quais motivos, desde criança sempre quis ter uma biblioteca de respeito. A ideia do que isso seja de fato, no entanto, foi mudando com o tempo. Na adolescência, pensava em algo semelhante ao acervo do mosteiro onde se passa o romance O nome da rosa, do Umberto Eco, ou numa coleção semelhante à do próprio escritor italiano, que abrigava seus milhares de exemplares em endereços diferentes. Conheci alguns acervos que seguiam proposta semelhante aqui em São Paulo, ainda que de dimensões exponencialmente menores, e sempre gostei do que vi: livros raros aos montes, quase sempre bem cuidados, e a impressão de estar em um lugar que deixa qualquer um inteligente — seja lá o que for exatamente inteligente — apenas por estar ali.

Bibliomania
É justamente sobre esse imaginário que existe ao redor do livro que falam os textos presentes em Bibliomania, de Marisa Midori Deaecto e Lincoln Secco. Os dois tocaram ao longo de anos uma coluna sobre o assunto na revista Brasileiros. “A Bibliomania nasceu da preocupação compartilhada com a substituição do impresso, a predominância da cultura digital e outros temas correlatos que têm chamado a atenção de editores, autores e leitores. Nosso objetivo foi desde o início defender o livro impresso através de histórias sedutoras sobre obras do passado”, escreve Lincoln em sua introdução. “Do livro-matéria ao livro-ideia, as palavras foram ganhando substância, ocupando seu espaço em uma seção nobre e rara do periodismo brasileiro, toda ela focada em literatura e assuntos editoriais”, registra Marisa.

Reunida pela Ateliê, a coletânea ganhou um projeto gráfico bem caprichado de Gustavo Piqueira, do estúdio Casa Rex, que vem fazendo trabalhos editoriais marcantes principalmente em parceria com a Lote 42. Fica claro que a ideia foi fazer do livro que fala sobre livros um objeto único. Dessa forma, um estojo traz dois volumes com as páginas costuradas manualmente, um azul para os textos de Marisa e outro vermelho, para os de Lincoln. É um trabalho de fato bonito, mas os calhamaços ameaçam se desmanchar após serem folheados algumas vezes.

Não, não me perdi entre as folhas e esqueci de apresentar os autores, só não tive espaço para fazer isso antes, mas vamos lá. Lincoln é livre-docente em História, lecionando História Contemporânea na USP desde 2003. Marisa, também historiadora, dá aula na mesma universidade e é autora de Império dos livros: instituições e práticas de leituras na São Paulo oitocentista e Edições e revoluções leituras comunistas no Brasil e na França.

Voltando à introdução de Lincoln, ele conta que os artigos para a revista deveriam ser curtos e dotados de linguagem cativante, afeiçoando “o leitor não só em função dos conteúdos inusitados, como as relações do livro com o erotismo, ocultismo, religião, revoluções, política, ciência e arte; mas também pela forma (escrita e sincopada em três ou quatro parágrafos)”. Em boa parte dos textos, atingem esses objetivos, ainda que, no geral, eu tenha me afeiçoado muito mais aos escritos dele do que dela.

Mais focados em histórias aparentemente comuns e saborosas e por vezes pessoais, os textos de Lincoln levam o leitor a querer falar e expor sua relação com os livros. Como em Tipos de livros, no qual ele conta como a descoberta do audiolivro foi preciosa para que tivesse uma alternativa à loucura de às vezes ler enquanto dirigia seu carro pela estrada. Já nos escritos de Marisa há certo distanciamento entre o autor e o tema de cada artigo, buscando uma pretensa imparcialidade que se aproxima das supostas isenções acadêmicas ou jornalísticas. Em alguns casos, por exemplo, dedica-se a analisar a famosa feira do livro de Frankfurt, espaço onde a racionalidade parece sobrepujar a paixão por esses objetos de papel.

Claro que para uma pessoa apaixonada por livros, como continuo sendo, é ótimo ler textos como os que compõem Bibliomania. No entanto, a minha relação com o objeto vem mudando ao longo dos últimos anos, especialmente depois que, como jornalista, passei a me dedicar quase que exclusivamente a escrever e tentar pensar esse universo. Primeiro mudou o meu ideal de biblioteca: não quero mais aquelas gigantescas, com milhares de exemplares e que ocupam um espaço físico gigantesco. Seria complicadíssimo organizar e manter tudo limpo — se não consigo fazer isso com o que já tenho, imagina se o volume se multiplicasse algumas dezenas de vezes… Não bastasse, gastar grana pra caramba para adquirir ou alugar o espaço necessário para tamanho acervo e mantê-lo está fora dos meus planos. Sequer tenho perspectivas de um dia ter o dinheiro necessário para tal, mas, mesmo que um dia o tenha, vou liquidá-lo de outras formas.

E não foi só isso que mudou. Comecei a dar muito menos valor para o objeto livro e mais para o conteúdo que há em cada volume. Quando você passa a receber dezenas de exemplares toda semana em casa e percebe a quantidade de porcarias publicadas diariamente que recebem o nome de livro da mesma forma que um trabalho de Jorge Luis Borges, Machado de Assis ou Dante Alighieri recebe, difícil não passar a ter certo desapego do simples objeto. O inverso disso, diga-se, que leva a situações bizarras, como as de quem compra livro de acordo com a cor e o design da lombada apenas para enfeitar a sala.

Enfim, acho que cada vez se faz mais urgente distinguirmos a literatura — e todas as suas frentes, não apenas a ficcional — da simples palavra “livro”, em que pese a paixão que ainda existe pelo objeto.

Bibliomania
Marisa M. Deaecto e Lincoln Secco
Ateliê
112 págs. e 120 págs. (dois volumes)
Lincoln Secco
É livre-docente em História, lecionando História Contemporânea na USP desde 2003.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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