“Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”
(Carlos Drummond de Andrade, em Os ombros suportam o mundo)
A vida é longa para o corpo. As mãos enrugadas e doloridas tremem ao acariciar os cabelos tão brancos e ralos. O ar falta em breves caminhadas pela sombra, tronco arcado, cada vez mais para dentro. Mais para dentro. Como a nascer ao contrário. Como a procurar pela essência. Porque a vida, sim, é longa para o corpo dos afortunados. Mas tão curta para a alma! Que quer ser eterna, mas não consegue. A casca na qual está envolta é frágil demais. Fina, como uma bolha de sabão. Linda, voa até ficar transparente e sumir-se no ar, desfeita em gotinhas que molham o rosto da criança sentada na calçada.
Viver é difícil, sim. E não é para qualquer um. Sempre há aqueles que não querem mais a casca. Que acham que, chegada uma determinada altura, a bolha vai se estourar, mesmo. E, por isso, a estouram de dentro para fora. Antes do tempo. Muito antes ou pouco antes. Tanto faz.
É da vida, da falta dela, da necessidade de dar cabo dela, que Paulo Nogueira fala, em O suicida feliz. O livro, como o título sugere, conta a história de um potencial suicida. Ou melhor: de um quarentão que está decidido a acabar com sua vida de uma forma especialíssima. Mesmo que ainda não saiba exatamente qual. Tratar deste tema é sempre espinhoso. Alguns autores são melodramáticos demais. Outros, secos demais. Nogueira acerta a mão. Não é nem uma coisa, nem outra. Não entra nas armadilhas dos textos sentimentalóides, que exploram a fraqueza do ser humano ao cometer “um ato desesperado contra a própria vida” (não é assim que sempre descrevem?). O suicida de Paulo Nogueira tem sotaque português e é o extremo oposto de personagens de obras como Romeu e Julieta, clássico de Shakespeare; Os sofrimentos do jovem Werther, belíssimo e dramático livro de Goethe; ou Madame Buterffly, poética e tristíssima história do inglês John Luther Long — mas mais conhecida pela ópera de mesmo nome de Giacomo Puccini. Em todas, o suicídio é a única saída para os apaixonados e seus amores impossíveis. Alexandre Pinheiro, protagonista do livro — que tem outros dois personagens importantes para a trama — é um frustrado escritor dos roteiros engraçadinhos de um talk show. É um desses que não querem esperar a bolha de sabão estourar sozinha. Chegou aos 40 anos e pensa que nada mais pode acontecer de interessante em sua vida. Não vai se apaixonar perdidamente por uma Julieta, uma Lotte (a musa de Werther) e muito menos por um oficial da marinha americana (o amor de Cio-Cio-San, a Butterfly). Nem vai envelhecer alegremente, a contar histórias aos netinhos a seus pés. Não, ele não tem mais o que viver. “Sabe, Diário, chega um dia, por volta dos quarenta, que não adianta mais fazer de conta. Porra, pra a que mentir? A gente sabe que, seja como for, é inútil — não vai mesmo ser feliz. Que não construirá aquela pirâmide. Que não amará e muito menos será amado por uma Helena de Tróia ou uma Dulcinéia Del Toboso. Que não descerá as cataratas do Niágara num barril. Bem, para esta última proeza eu ainda vou a tempo. Mas quem disse que me apetece?” (p. 108)
Como já falei antes, Alexandre Pinheiro, conhecido como Alex, tem outros dois companheiros para dividir as páginas do livro. Um é seu cabeleireiro, Ricardo Antunes. É ele, aliás, quem tem a primeira e muito boa frase do livro. “Daqui a pouco eu nunca mais vou morrer […] Afinal, as pessoas não diziam que ter um filho significa sobreviver à nossa própria morte?” (p. 7) Boa abertura para um livro que trata sobre morte. A outra personagem que permeia o livro é a programadora-geral de um canal de tevê portuguesa, Eulália Pires. Desde muito pequena, amava tevê. Vidrava os olhinhos na programação toda, inclusive nos comerciais. Foi num comercial, inclusive, que pronunciou a primeira palavra de sua curtíssima vida: “Pop”, o nome do detergente da propaganda.
Esse trio (Alex, Ricardo e Eulália) terá suas histórias, a princípio separadas, emboladas no meio e unidas no final. Mas, desde o princípio, têm um elo que os liga profundamente: a televisão. Alex escreve para um programa de tevê na emissora cuja programação, que inclui um jogo de perguntas e respostas do qual Ricardo participou e ganhou um Mercedes de cor duvidosa, é gerenciada por Eulália. É óbvio que o trio vai acabar se encontrando em alguma altura do livro. E na ocasião mais dramática.
Separadamente, todos têm seus problemas, suas angústias, sofrimentos e — por que não? — alegrias. Alexandre tem um humor peculiar e ácido. Suas piadas ficam cada vez mais macabras e repletas de humor negro, à medida que percebe que sua vida é tediosa demais e que o ser humano é muito, mas muito estranho. Desabafa suas decepções e conta todos os detalhes de sua vida no Diário (ele sempre se refere ao caderno em letra maiúscula) comprado na Argentina.
“Detenho-me na seguinte notícia: Miami, da AFP — O arremesso de anões, diversão proibida no estado da Flórida, EUA, desde 1989, voltou a ser objeto de debate. A associação Little People of America defendeu ontem a vigência dessa proibição, depois da apresentação de um recurso para que a lei seja abolida. David Floor, de 97 centímetros de altura, contestou em tribunal a constitucionalidade da lei. Ele afirma que a proibição afeta o direito dos anões de decidirem por si próprios. […] Estão vendo só? Depois não querem que eu rebente os miolos com um bacamarte! Acham que isso é um habitat respeitável? […] Mas é claro que vou suicidar-me. Quando, querido Diário? Daqui a pouco. Também não é preciso empurrar. […]” (p. 22 e 23)
Durante sua preparação para o suicídio perfeito, Alex desfila ao “amigo argentino” toda sua sabedoria sobre o tema. Matar-se é uma arte que ele pretende controlar muito bem. Como ele mesmo diz, está muito bem acompanhado em sua tarefa: Cleópatra, Epicuro, Van Gogh, Maiakovski, Curt Kobain, Hemingway, Florbela Espanca, Santos Dummont, Sócrates… E mal acompanhado também: Hitler e dezenas de chefes nazistas, Nero, Judas Iscariotes… De todo modo, precisa preparar-se para “o” momento. Será uma morte inesquecível — para ele e para quem a vir.
Eulália vive. Está num bom emprego. Chegou onde sempre quis. Tem seu nome na porta, em letras grandes. Mas não é muito feliz. Parece cansada. Obcecada com o trabalho e de nariz empinado, sempre. Aquele tipo de pessoa que não tem vida fora da profissão. Amarga. Mal-amada, como alguns suspiram pelo corredor da tevê. Leva a vida. E só.
Ricardo não quer morrer. Gosta da vida. Mesmo depois de atropelar um homem a caminho do hospital, onde veria a esposa, que estava para dar à luz uma menininha que ele imaginava ser como Shirley Temple.. No dia seguinte, aparece no jornal que o homem atropelado morreu e deixou uma viúva e filhos. Mas Ricardo não tinha certeza de que o rapaz estava vivo ou morto quando o seu Mercedes passou por cima dele, na chuva. Não o socorreu. Mas, enfim… Também não quis morrer quando soube que sua filhinha linda, sua Shirley Temple, tinha síndrome de Down. Pelo contrário. A vida é difícil, mas tem de ser vivida.
O título escolhido por Paulo Nogueira é o mais intrigante desta obra. “E lá existe suicida feliz, meu Deus do Céu?”, devem pensar muitos ao começar a ler o romance. Não há uma resposta para essa pergunta, na verdade. A felicidade é como a vida: um mistério, um corpo curto, pequeno e apertado para uma grande alma.
O autor — Paulo Nogueira fez faculdade de Comunicação Social na USP. Todos os seus livros foram escritos e publicados em Portugal, onde mora há 15 anos. Já publicou os romances O homem que foi para o céu, O último dia do mundo, O corpo estranho, Um é pouco, dois é demais e Transatlântico. O suicida feliz integra a coleção Tanto Mar, da editora Planeta, dedicada a escritores portugueses.