Live de uma época

"Vida ao vivo", de Ivan Angelo, é original na forma e denso na reflexão
Ivan Angelo, autor de “Vida ao vivo”
01/08/2024

Vida ao vivo, novo livro de Ivan Angelo, é uma ficção protagonizada por Fernando Bandeira de Mello Aranha, um multiempresário que se destaca pela propriedade da Rede Nacional de Televisão (RNT). Em 24 de novembro de 2021, Mello Aranha suspende a programação da Rede para iniciar uma série de relatos autobiográficos. Expondo fatos e especulações, o comunicador pretende encontrar uma mulher por quem diz ter se apaixonado quase vinte anos antes, guardando dela apenas uma fotografia, batida no momento em que ele esteve na rua pela última vez.

Deste novo trabalho de Ivan Angelo salta aos olhos sua forma criativa, fazendo lembrar do interessantíssimo A festa, seu tão referido livro de estreia, publicado em 1976. Vida ao vivo se elabora com aspectos do drama, entre rubricas e falas de personagens diversas, em meio às quais se desenvolve com maior volume o monólogo de Fernando Aranha, vez por outra entrecortado de diálogo. Fernando se pronuncia por dezoito noites, e cada uma delas é sucedida pela reunião de comentários de pessoas diversas, que se manifestam após assistirem ao magnata. Por sua vez, ele, na apresentação seguinte, comenta alguns comentários, o que compõe, tomando uma expressão sua, um “contrafeito palimpsesto”, pelo qual vamos sabendo gradativamente do protagonista, da mulher que ele procura e do desencontro entre eles. Somando as dezoito noites e os dezessete dias seguintes, o livro totaliza trinta e cinco capítulos.

Perfil incomum
Ao longo de sua prosa, Mello Aranha se mostra um homem solitário e relaciona duros golpes que diz ter sofrido: a infidelidade de uma namorada, que o traiu com seu próprio filho, e uma tentativa misteriosa de assassinato, com a aplicação de coronavírus em figos que lhe seriam servidos. As falas do empresário se marcam também por seu vasto repertório cultural, vista a sua atuação no teatro em tempos de juventude universitária. E diante da tão propalada polarização política do Brasil contemporâneo, surpreende que o milionário midiático assinale contraponto, direta ou ironicamente, a ingredientes do bolsonarismo — que é lacaio ou parceiro obscuro de proprietários gananciosos: “Para terraplanistas dessa laia é proibido não ser cristão da seita deles”, diz numa passagem; “Agora, nos casos sem esperança destes anos vinte, olha ele aí de novo! O velho e bom Deus invocado até pelos hipócritas, pelo genocida-mor e suas falanges”, sentencia em inequívoca alusão ao ex-presidente que agiu para sabotar a vacinação durante os devastadores anos da pandemia.

Visto a partir desses componentes, Fernando Bandeira de Mello Aranha soa um homem ético e em acordo com princípios humanistas consagrados pela coletividade, mostrando-se digno da solidariedade em geral destinada às pessoas vencidas por desenganos. Afinal, ele conta setenta e sete anos, dezoito dos quais vive recluso em casa; é pai de um filho falecido e de um com quem cortou relações, desde que soube da traição acima referida; e deseja avidamente encontrar uma mulher de quem sabe pouquíssima coisa e em quem pensa como um anjo redentor. Assim ele se descreve e resume na primeira noite de exibição de Vida ao vivo, o programa que lança ao ar sem aviso prévio:

Eis o homem. Ecce homo. Um homem sozinho, doente, convalescendo penosamente há quase sete meses, magoado, machucado, que planejou por seis meses a vingança e o renascimento, e que por causa de uma solidão insuportável resolveu fazer confidências a trinta milhões de pessoas de uma vez no horário nobre da maior rede de televisão do país (…).

Se a literatura é sinônimo de sensibilidade e Fernando é leitor de alto repertório, ele é um homem sensível. Se o bolsonarismo denota barbárie e Mello Aranha lhe faz oposição (“Cuidado com esses pátrias acima de todos, hein?”, recomenda), ele é um cidadão civilizado. E se o milionário chegou a uma idade avançada e se vê abandonado e cercado de riscos, ele é merecedor de compaixão.

Outro lado, o mesmo
Mas “toda narrativa é versão”, conforme ele próprio reitera. Quando lentes e holofotes variam, pode-se ver um personagem controverso, que além de estórias e versos, tem também na ponta da língua um rol de feitos egoicos e predatórios, porque, para Fernando e sua classe, todos os valores se subordinam à busca do poder financeiro que garante poder social. Ao anunciar a procura pela moça, o empresário exibe a postura típica dos que avaliam a existência pelo seu poder de compra, escancarando o tamanho do seu sentimento: Mara, cujo nome é revelado ao longo da trama, receberá “meio milhão de dólares, meio milhão!” — repete e exclama para “trinta milhões de testemunhas” —, se for ao encontro dele.

O misto de autoexibição e oferta patenteia o estereótipo do mandachuva de projeção midiática, que se aproxima pelas telas enquanto demarca distâncias concretas, colocando-se no patamar dos invencíveis que compram a vida para submetê-la e superfaturá-la. O cosmopolita interessado pela comunicação popular é o mesmo que lançou mão de métodos devastadores para alcançar suas metas. Ainda muito jovem, Fernando ascende ao comando das empresas da família recorrendo a uma chantagem que fez seu tio Freddy se retirar do posto, conforme o próprio sobrinho admite, páginas após negar seu ato:

Fui… fui impelido. Providenciei o flagrante fotográfico dele na sauna do Hotel Danúbio, surubando com dois caras fortões, mostrei a ele as fotos, houve choro e ranger de dentes, ele renunciou e fomos todos felizes para sempre.

Se o transpusermos da metáfora para a literalidade, vê-lo-emos próximo de dois destacados agentes da TV nacional. Refiro-me a Sílvio Santos, ex-camelô e dono do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), e a Roberto Marinho, herdeiro que levou a Rede Globo à dimensão de uma das mais ricas empresas do país. Santos é um ícone cafona e apostou numa programação popular, farta de ingredientes grosseiros, com ele próprio à frente de tantos quadros. Colecionador de arte e integrante da Academia Brasileira de Letras, Marinho cultivou a imagem da discrição elegante, e, embora com nível de profissionalismo inegavelmente maior que o de seus concorrentes, investiu numa grade televisiva repleta de futilidades, de manipulação política e de cafonice também. Entre essas distinções, uma inequívoca semelhança: a aproximação do poder em geral e de governos de propensão autoritária em particular, sob o objetivo de prosperidade comercial e influência política.

Fernando Bandeira de Mello Aranha confirma a semelhança. Apreciador de vinhos caríssimos e repentino comunicador de massa, o milionário rechaça o latifúndio improdutivo e a mais-valia aguda ao mesmo tempo em que fala do crescimento econômico de seu grupo empresarial “nos anos milagrosos” (da ditadura civil-militar brasileira). Passaram-se aqueles anos, mas não o senso do investidor: “Quando Diretas Já virou um bom negócio, com marketing e tudo mais, vendemos Diretas Já”, diz, sem qualquer rechaço.

Acrescentado de enganos
Enquanto o protagonista se mantém apegado ao holofote de seu monólogo, é pelo mosaico de falas dos dias seguintes que avultam peças e pistas a lançarem luz sobre Mara. Décadas antes de Fernando Aranha fazer Vida ao vivo, sua antiga esposa pega uma alta quantia de dólares no cofre da família, a fim de custear tratamento de saúde para um dos filhos, em segredo. Supondo-se roubado, Fernando Aranha delega a resolução do problema ao seu guarda-costas, um criminoso profissional. A desconfiança recaiu sobre a mãe de Mara, empregada doméstica, que viu sua filha, ainda menina, ser submetida a violência sexual para que confessasse o crime que não cometeu:

O mundo dos empregados era uma coisa à parte, sempre foi, né, no nosso meio… hã… dos homens de negócios.

Personagem principal de um romance dramático e dotado de um coro desarmônico, Fernando Bandeira de Mello Aranha tem algo de personagem trágico. O empenho para encontrar seu anjo redentor culmina em seu declínio público, pois Mara lhe atira esses fatos também ao vivo e leva o dinheiro da recompensa, vingando o suicídio da mãe, devastada após assistir à violência sofrida pela filha. “Somos o que fomos, acrescentados de culpas”, diz Fernando, da epígrafe à última página de Vida ao vivo, esta obra inovadora que expõe a antiga forma de ser e de agir dos que são possuídos por coisas e enganos.

Vida ao vivo
Ivan Angelo
Companhia das Letras
290 págs.
Ivan Angelo
Nasceu em Barbacena (MG), em 1936, e construiu longa carreira como jornalista. Publicou, dentre outros livros, os romances A festa (1976) e Pode me beijar se quiser (1997); a novela Amor? (1995); e o livro de contos A face horrível (1986). Por esses títulos e por mais de uma vez foi vencedor do prêmio Jabuti e do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho