O livro de contos mais recente de Cristhiano Aguiar, Gótico nordestino, tem um apelo para o público jovem e é indissociável de uma estética contemporânea ligada ao mundo pop das séries de televisão. O conjunto traz nove histórias curtas com enredos ligados ao sobrenatural ou simplesmente ao estranho. A inovação estaria na ambientação para cenários locais, adaptando figuras do imaginário pop como zumbis e vampiros para as condições sociais e psicológicas daqui. A exuberância “neoarmorial” que poderia surgir daí, como sugerido na bela capa escolhida para a edição, acaba pendendo mais para a indústria cultural e o resultado estético é como muitas das séries brasileiras dos serviços de streaming: mantém uma estrutura narrativa gringa, com uma cor local. Isso não impede que muitos leitores possam se divertir com o esforço imaginativo do livro, que tem principalmente nas descrições mais plásticas um estranho efeito sedutor.
A reflexão sobre o livro pode nos levar a pensar a respeito da literatura fantástica em sentido amplo e a duas coisas que são fatais a ela: a explicação total dos acontecimentos, de um lado, e sua gratuidade, do outro. As melhores histórias fantásticas são aquelas em que o monstro nunca surge completamente descrito, em que o mistério nunca se revela por completo — é conhecido o pedido de Kafka para seu editor de que o terrível inseto não fosse desenhado na capa. São aquelas em que algo do estranho está intimamente ligado ao lugar, às pessoas, ao cotidiano e nunca é mesmo completamente separável deles. Para ter profundidade, para incomodar, para se ligar ao leitor como uma ventosa que nunca mais se soltará de sua pele, o novo do estranho precisa ser também um velho conhecido, como Freud argumenta em seu conhecido ensaio sobre o conto O homem de areia, de E. T. A. Hoffmann.
Investidas estéticas
Em Gótico nordestino há, desde o título, uma tentativa feliz de fazer o horror surgir a partir das especificidades locais. O sucesso da tentativa é variado nas histórias. Embora o cenário seja declaradamente o sertão de cangaceiros ou uma praia abandonada de uma cidadezinha qualquer, as especificidades deste local nem sempre se ligam ao misterioso. A impressão é de que as histórias permanecem mais fiéis ao gótico de origem do que ao nordestino para onde são transplantadas. Isso dá um elemento de gratuidade a algumas das narrativas, como se cenário e ação flutuassem um sobre o outro, sem se ligar e sem interferir um no outro.
A rica tradição oral de histórias de assombrações e criaturas fantásticas brasileiras, seu modo específico de indicar a presença conhecida daquele estranho, dá lugar a um misterioso externo, que vem de fora (o que literalmente acontece, por exemplo, no caso da maldição de A mulher dos pés molhados). Uma outra estratégia praticada no livro, a de normalizar o estranho e com isso causar um espanto ainda maior (ao modo de Cortázar, Calvino ou Borges), também não se concretiza por um excesso de adjetivos e tons penumbrosos.
As histórias parecem ser concebidas mais a partir de um certo efeito visual fantástico sedutor que, ao invés de servir de motor para a narrativa, acaba servindo de ponto de chegada, como uma faca ou olhos ou um incêndio que brilham no escuro e que se quer mostrar. Esse efeito não surge tanto da relação entre os personagens, de um acontecimento infeliz do passado, acobertado pela razão, que ressurge novamente no presente (como em tantas histórias de Edgar Allan Poe), mas fica desligado deles. Abate-se sobre os personagens com uma certa arbitrariedade, que faz também com que a construção narrativa perca em força. Em resumo, as histórias parecem buscar mais uma exuberância visual do que narrativa, por assim dizer.
Isso não é problema desse trabalho específico, mas sintoma das relações pendulares entre cinema e literatura, que balançam de década em década, em nosso momento específico. Depois dos videoclipes, talvez, duas décadas atrás, as séries de streaming são o último peso adicionado nessa balança em movimento.
Literatura e audiovisual
No caso de Gótico nordestino, são vistas influências já consagradas do audiovisual — a velocidade, o corte das cenas, o elemento visual como condutor da construção das personagens —, mas também algo além. A narrativa privilegia de tal maneira os elementos visuais e suspensão ao se confrontar com o estranho (“Fim do episódio, desejar continuar assistindo a série?”), que acaba por abrir mão da construção psicológica dos personagens. O último conto, Vampiro, é exemplo disso. Toda a longa construção da personagem e de cenário é trocada por um pequeno susto-revelação no final.
A adição de elementos estranhos rumo a um rompante surpreendente (coisa já da estética romântica que a Indústria Cultural repete ad nauseam) é um procedimento tão recorrente no livro que o leitor às vezes tem a impressão de estar lendo uma versão romantizada de uma série fantástica da Netflix. Ou, dito pelo contrário, é como se lêssemos um livro de contos escrito para ser roteirizado e transformado em série.
A simplicidade vocabular e sintática, voltada quase sempre para a ação ou para as impressões de um narrador colado no protagonista, dá às histórias uma clareza de vídeo — o que dificulta a construção de uma ambientação de horror. A opção por estes mecanismos, ao invés de técnicas narrativas da palavra ou da tradução de técnicas cinematográficas em técnica literária, parece visar um leitor mais educado na tradição do audiovisual do que na literária, ou seja, sem dúvida fala muito com a maioria dos leitores brasileiros, o que talvez justifique sua inclusão no polêmico gênero da “literatura de entretenimento”.
O conto mais interessante do livro, Anna e seus insetos, funciona melhor justamente porque explica menos, envolve a estranha presença dos insetos em questões pessoais da protagonista, que é descrita em detalhes convincentes. A questão do “sobrenatural” quase não se coloca. Podia ser tudo mergulho psicológico ao modo clariciano, ou seja, de profundidade metafísica, assombrosa, já para muito além da mera física…
Ficção especulativa
Uma das dificuldades dessa empreitada do horror brasileiro (ou melhor, da ficção especulativa como um todo) talvez seja a relação histórica específica de nossa cultura com o chamado sobrenatural. Enquanto as histórias fantásticas europeias e estadunidenses surgiam quase que em oposição à racionalização e à secularização modernas (como, por exemplo, no Drácula, de Bram Stoker, ou nas histórias do Cthulhu, de H. P. Lovecraft), tratando dos vestígios do encantado (locais ou trazidos das colônias) durante seu próprio processo de extinção, aqui, nos territórios colonizados, mas com múltiplas matrizes culturais vivas e atuantes como o nosso, o elemento fantástico não pode ser simplesmente “folclorizado” e dissociado da vida cotidiana e das práticas religiosas das pessoas.
O fantástico, aqui, precisa ser tratado como elemento ordinário, não extraordinário, e isso subverte o elemento de excepcionalidade que até então definia o gênero. O termo já paradoxal “realismo fantástico”, que se desenvolveu não por acaso na América do Sul, foi uma tentativa de representação dessa configuração específica. A ambivalência católica, que aqui também sempre tem algo de mágico, e a indecidibilidade diante da existência do Diabo, em Grande sertão: veredas, é outro grande exemplo.
A literatura contemporânea também parece lidar de maneira crítica com a questão. É difícil, por exemplo, chamar obras contemporâneas como Torto arado, de Itamar Vieira Junior, Um exu em Nova York, de Cidinha da Silva, ou O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, de literatura fantástica ou de realismo mágico. A sobrevivência de certos elementos do encantado resistentes à modernização colonizadora por todo o território são o que existe de mais característico e fundamental para nossa riquíssima tradição oral, e são fundamentais para uma literatura especulativa que se queira brasileira. (Experimentações afrofuturistas, por exemplo, parecem seguir esta trilha…) Lidar com isso pode abrir possibilidades excitantes para redefinir os estatutos do real e do fantástico, ou melhor, para oferecer representações condizentes das relações únicas entre o real e o fantástico que se estabelecem por aqui. Seria o caso talvez de imaginar, depois do Gótico nordestino, também um Nordestino gótico.