Literatura é algo que não se ensina. E talvez nem mesmo se aprenda. Quem escreve descobre a escrita a despeito das fórmulas e dos atalhos possíveis. O leitor — essa figura cada vez mais rara em tempos em que todos querem apenas ser escritores — é um desbravador dos significados que tem diante de si. Às vezes, o enigma é quase intransponível e acaba por devorá-lo. Não à toa, a literatura brasileira ainda está centrada em duas discussões: foi mesmo Capitu uma esposa adúltera?; qual é o verdadeiro sentido de G. H. saborear aquela barata? O debate é longo e jamais terá um veredicto. Ainda bem.
Mas nem sempre é assim. Existe uma literatura que anda por caminhos já traçados, que percorre corredores já iluminados, que entra em cavernas já exploradas. Não diria que é uma literatura eminentemente menor, porém mais preguiçosa — mas que pode servir, em certas ocasiões, como um bom alívio cômico em uma sociedade cada vez mais cansada e pragmática. Dan Brown é, muito provavelmente, o melhor porta-voz contemporâneo dessa facção. Joël Dicker, autor-coqueluche suíço, seu maior discípulo.
O autor de O Código Da Vinci segue um roteiro claro: a) assassinato misterioso; b) Robert Langdon, o professor de simbologia, é chamado; c) uma grande investigação começa, revelando segredos de sociedades secretas e afins; d) os planos de dominação mundial são descobertos; e) o perigo é neutralizado; f) Langdon se envolve com a mocinha que o ajudou; g) Langdon termina sozinho porque é um lobo solitário. Variações acontecem, mas a base é essa, sobretudo nos três primeiros livros da hexalogia com o professor.
Dicker não é tão circunspecto assim, mas não é menos didático. Um animal selvagem, seu livro mais recente publicado no Brasil, é a síntese de uma literatura feita às pressas. Se Brown coloca certa elegância na sua escrita, criando atmosferas e tensões, manipulando o leitor em um bom labirinto de linguagem — ainda que não se equivalha à arte de Ian McEwan, P. D. James ou mesmo Simenon —, Joël Dicker escolheu outro caminho: uma escrita sem estilo, sem cor. No seu caso, o que envolve o leitor é a trama, o argumento, em geral muito bem articulados. E essa é uma escolha premeditada, arbitrária.
Quem leu Os últimos dias de nossos pais, seu primeiro romance, e vai para os livros posteriores percebe que houve, no mínimo, uma mudança. A verdade sobre o caso Harry Quebert, seu estouro literário, é o melhor da safra comercial: mistura Twin Peaks, Philip Roth e consegue atualizar a ideia de thriller urbano. O caso Alaska Sanders também está entre os melhores de Dicker.
Em todos eles existe uma dose de didatismo e o cuidado para que o leitor não se perca. Não seria exagero dizer que Dicker é um escritor perfeito para tempos em que as pessoas têm pouca afeição a uma literatura que traga desconforto. É preciso alentá-las, pegar pela mão e guiar para que não se enfadonhem com o livro. É como se o labirinto narrativo tivesse uma faixa segura que leva até à saída. Um animal selvagem subestima o leitor, como se ele não soubesse entrar sozinho nos bosques da ficção. E isso desemboca em um bom argumento, mas estrebucha em uma construção simplista e, como já comentado, sem estilo.
Bambolê narrativo
Como sempre, Dicker entrelaça algumas histórias: o casamento aparentemente feliz de Sophie e Arpad; a relação tumultuosa entre Greg e Karine; a amizade frágil dos casais e uma obsessão secreta que ganha outras proporções. Em meio a isso tudo, o assalto a uma joalheria vai colocando elementos de suspense, dispersando e atraindo outra vez o leitor, como um bambolê narrativo. Só que o gosto fica ainda mais amargo quando um personagem do passado ressurge: o Fera — uma tradução questionável para o original Fauve, que tem a dubiedade de ser um sobrenome e um apelido —, o que joga ainda mais força na confusão estabelecida.
Aí, claro, à medida que Um animal selvagem avança, o livro precisa se justificar pelas escolhas e enredos. As soluções são mirabolantes em certas situações, e o leitor precisa fazer um pouco de esforço para comprar as ideias. Ian McEwan, quando escreveu Enclausurado, uma novela em que o narrador é um feto, parte de uma premissa impossível para criar sua história; entretanto, existe um acordo silencioso — desde a primeira página — de que aquilo é possível.
Em Um animal selvagem, a impressão que fica é que as regras do jogo são alteradas com o livro em andamento, ao bel-prazer do autor, para conseguir oferecer um fechamento ao texto. Personagens fortes, repentinamente, se tornam vulneráveis; o tom da narrativa muda; escolhas pouco prováveis são feitas e, assim, Dicker — que parece um escritor cansado — vai criando o seu catálogo impreciso de elementos situacionais.
Outro thriller recente, O sanatório, de Sarah Pearse, é o oposto do que Dicker faz em seus livros. A autora não escolhe os malabares narrativos para conduzir ao final, mas uma trilha mais concisa e menos estapafúrdia. E isso, claro, coordenando certo estilo e até uma semelhança com Um animal selvagem, já que a personagem principal é, assim como Greg, uma policial. O resultado, entretanto, não é a frustração de se sentir enganado por um livro que “poderia ter sido e não foi”.
Escolhas estéticas
Dizer que Dicker é somente um autor comercial ou de “literatura de entretenimento” — como se houvesse alguma literatura de tortura ou algo assim — não passa de um argumento rasteiro e que nada tem a ver com o debate literário. Até porque grandes autores como Salinger, Poe, Wilde, Luis Fernando Verissimo e Borges foram muito populares em suas épocas e nem por isso ficaram devendo em apuro e coesão.
Na prática, alguns trechos e diálogos parecem escritos de forma mecânica, sem nenhuma emoção, como se a linguagem estivesse única e exclusivamente a serviço da trama e nada mais. A grande questão sobre Um animal selvagem está muito mais centrada nas escolhas estéticas do autor do que em qualquer subjetividade — como talento, por acaso —, e parecem reverberar com intensidade ao longo de toda a sua obra, mas incomodar de forma muito pungente nesse romance. Ao fim e ao cabo, Joël Dicker é um escritor criativo, com boas tramas, mas que se perde ao tentar nadar em águas rasas demais.