Literatura em feira livre

Volume de ensaios de Lêdo Ivo transita entre a crítica, a aula e a memorialística
Lêdo Ivo por Robson Vilalba
01/07/2011

Insistentemente acossado pelos emissários das novas tecnologias, o poeta idoso é convocado pela tarefa de providenciar seu próprio site. Antes, pela tarefa de encomendar às empresas que lhe anunciam seu maravilhoso trabalho, um site à altura de seu mérito literário e relevância cultural. Informado do fato de que, mantendo-se ausente da internet, não possui existência efetiva (não possui mesmo qualquer tipo de existência), deve sacar sua excalibur da pedra e, de um gesto, converter-se em poeta virtual, com direito ao convívio do leitor virtual, renunciando à posição vexatória de analfabeto eletrônico, mediante investimentos módicos. Esse mesmo poeta idoso há tempos assina contratos editoriais que vaticinam possibilidades de publicação “em quaisquer formatos e mídias existentes e conhecidos” (CD-Rom, audiobook, e-book e além), em quaisquer línguas e por todos os países do mundo.

Diante de possibilidades tão promissoras, alegra-se o escritor longevo: “A minha poesia, que fala dos morcegos e guaiamuns, das dunas e dos navios enferrujados de minha terra natal, poderá ser traduzida para o paquistanês”. Alegra-se e aterroriza-se:

Sinto que, no inesperado e indesejado rito de passagem da Galáxia de Gutenberg para a editoração eletrônica e a internet, a minha identidade se desfaz ou se desfolha. Deixo de ser eu mesmo. É como se eu necessitasse de ser fragmentado ou mesmo esquartejado para alcançar o outro lado do rio.

Vivemos tempos violentos. Lêdo Ivo, o poeta em questão, talvez mereça o direito de permanecer, contudo, em sua forma quase inteiriça, deixado em seu posto, aquém da outra margem. Seu livro, O ajudante de mentiroso parece oferecer-se como um inteligente (ainda que sutilíssimo) comentário às exigências de exposição e espetacularização que nos acossam, a cada dia, a todo momento. A capa reproduz a imagem de um antigo farol de Maceió (a terra natal) e acresce, como epígrafe, Valéry: “Je me moque des courants, j’admire seulement les navires”. Ora, a capacidade de rir-se do que é corrente (sejam as correntes críticas, sejam as modas literárias, sejam os delírios de grandeza pós-modernos), essa deliciosa auto-ironia que se espalha ao longo das páginas acompanhada de uma verve afiadíssima (a certa altura, mencionam-se os “umbigos preclaros” dos escritores livrescos, que “vivem enfurnados em si mesmos”) são os principais atributos da prosa elegante com que Ivo percorre o que talvez sejam, ainda, “confissões de um poeta” (para mencionar o título de outro livro de sua autoria).

Nesse caso, contudo, uma barca mítica é evocada ainda no texto de abertura, intitulado Guardar o que está perdido. A arca em questão é a de Noé, e o episódio que a envolve recupera a esposa do vetusto personagem brindando-o com nada menos que uma bofetada de repúdio. O navio, barca, ou arca de Noé talvez seja, no registro metafórico do título do livro, bem como naquele indicado em sua epígrafe, a construção provisória (mas suficiente) por meio da qual a figura bíblica e sua memorável tripulação atravessaram os desígnios e a bondosa ira divina, em sua forma mais conhecida: águas correntes, águas caudalosas. Faz pensar nas extensas décadas de atividade literária própria e alheia percorridas pela escrita do poeta octogenário.

Ajudante de mentiroso, Lêdo Ivo empenha-se na nobre tarefa de turvar em ficções o desenho tosco do depoimento quanto ao real. Se a mulher de Noé, de fato, esbofeteou seu honrado cônjuge? Quem soube? Quem saberá? Algum mérito no documento que atestasse a factualidade real desta simples história, desta réstia escassa do movimento imemorial dos tempos? Em desprezo às correntes, às águas cujo destino é o fluxo, o poeta desvia o olhar de seu leitor para as construções por sobre as quais resistimos timidamente à inevitabilidade do tempo em passagem. Desvia o olhar para o escritor, representado sob a persona de um cantador de feira livre, criando versões para essa soma de nadas, cujo destino é perder-se: “A nossa própria existência, soma inumerável de versões intestinas e alheias, é uma ficção”.

Guardar o que está perdido é tarefa, portanto, em que se pode acolher a impossibilidade em que se efetua o trabalho da escrita. Obviamente não o registro do verdadeiro. Quando muito, a fatura lúdica por entre os destroços do que não fica. A identidade, então, é algo que se desfolha em variações, “já que somos um estuário de eus sepultados, presentes e sucessivos”.

Dicção variada
A coletânea abriga textos com dicção variada: alguns flagram o acadêmico falando a seus pares, outros o homem de letras que agradece homenagens recebidas. Há, contudo, algo de valiosamente memorialístico disperso por entre as mais de 300 páginas do volume e que seduz de modo irresistível ao amante das letras. Como deixar de sorrir diante do relato de Machado de Assis viúvo presenteando uma grande amiga de Carolina com o livro preferido da esposa? Relato que, por sua vez, é apenas o mote para uma discussão sobre a recepção de escritores russos no Brasil.

Os que se ocupam da história da poesia nestas terras poderão garimpar preciosos comentários (ou impressões de leitura) dirigidos a obras e a poetas sumariamente riscados do cânone oficial. Vale lembrar que por sobre os ombros do próprio Lêdo Ivo (a despeito da pluralidade técnica e experimental da poesia que escreveu em um lapso de tempo superior a 50 anos) permanece pesando a associação (dada como) vexatória à poesia da “geração de 45”, acusada, entre outros deméritos, de atualização do que teriam sido propostas ou valores técnicos dos ainda mais vilipendiados poetas parnasianos. Ciente do repúdio e da torção crítica aí operada, Ivo parece responder com o texto No jardim:

Estou num jardim, e eles acorrem à minha lembrança. São os fundamentalistas literários. Para eles, a literatura não é um espaço destinado a aplacar todas as fomes e todas as sedes, antes um domínio fechado, onde se pratica o exercício do limite e da intolerância, e da intimidação amparada pelas certezas inarredáveis; uma galeria de ídolos aquinhoados dia e noite pelo fervor das orações repetitivas e hinos automáticos.

Passeando generosamente por entre poetas e prosadores os mais diversos, as flores díspares de seu jardim, O ajudante de mentiroso ocupa-se da tarefa (de que desdenharão alguns sábios) de tentar entender a linguagem peculiar enunciada em cada livro. De tentar entender a especificidade do projeto poético (ou dos anseios da prosa) de cada um dos inúmeros narradores e sujeitos líricos a que se refere. Quando incide sobre o que lhe pareça mal acabado, tosco, ou dissonante no arranjo de um poema, de uma proposta, de uma escolha, permanece, contudo, um tom elegante e respeitoso. Cuidadoso, talvez, já que deriva, também, de uma inteligente renúncia a certezas, do reconhecimento da precariedade de quaisquer juízos:

Na verdade, nós não sabemos onde começa e onde termina a literatura. E é essa ignorância, honra e alegria da própria literatura, que nos estimula e salva — a nós que somos criadores literários ou simples leitores — e nos permite percorrer, da infância à morte, um território infindável, festejando a diversidade e a diferença, num silêncio visitado pela aceitação tolerante e pela surpresa, e até pela veneração.

Neste espaço que rechaça a medida certa e a fronteira redutora, cada obra tem o seu lugar e a sua significação, mesmo aquelas que, aparente ou ostensivamente, não têm lugar nenhum numa sempre vulnerável e discutível hierarquia de valores e julgamentos nascida da caprichosa subjetividade humana.

Trata-se de uma coletânea de textos em prosa com gênero levemente discutível: alguns remetem à atividade crítica, outros ao tom e à circunstância da oratória, outros ainda à memorialística, sendo que alguns sugerem a conferência ou a aula acadêmica — e não poucos o mero devaneio palavroso da “pulsão confessional”. No entanto, como não se praticam aí sectarismos teóricos ou filiações historiográficas, O ajudante de mentiroso pode ser lido com a mesma liberalidade festejada em seus jardins.

Há quem possa se deleitar (como a autora dessas linhas) com a impressionante riqueza de informações e alusões históricas que criam uma visão de bastidores de largo fôlego em tudo contraditória com as versões oficiais e as tábuas de “características” relativas a períodos ou a escritores que se produziram sobre a literatura brasileira praticada ao longo do século 20 (pouco antes e pouco depois). Há quem possa se divertir com o humor e as familiaridades tomadas com grandes nomes e obras de reconhecido mérito e valor. Outros apreciarão as anedotas e os “casos” evocados com leveza e despretensão, como o passeio com Ungaretti em visita ao túmulo do filho, no Brasil.

É certo que o tom, em diversos momentos, corta mais raso ou faz pensar no acadêmico de fardão ou, ainda, na celebração algo corporativa de pares, amigos ou confrades. Mas é apenas outra das tantas faces, outra das ficções em que se rabiscam as mentiras de que o livro é feito. De todo modo, o volume deve agradar a quem se deixe perder nos campos quase sempre minados e múltiplos da experiência literária. Não surpreende em todos os textos, mas surpreende muito mais do que nos acostumamos a vivenciar nos jardins letrados locais.

O ajudante de mentiroso
Lêdo Ivo
Academia Brasileira de Letras/Educam
349 págs.
Lêdo Ivo
O poeta, ficcionista, ensaísta e tradutor Lêdo Ivo nasceu em Maceió (AL), em 1924. É membro da Academia Brasileira de Letras desde 1986. Em sua obra ensaística, merecem destaque: O preto no branco (1955), O universo poético de Raul Pompéia (1963), Poesia observada (1978), A ética da aventura (1982) e A república da desilusão (1995). Sua obra poética foi coletada em Poesia Completa (1940-2004).
Francine Weiss

É professora de literatura.

Rascunho