Surpreende a diversidade das vozes que permeiam nossa literatura atual. A variedade é tanta que se torna impossível falar em escola, geração ou coisas do gênero. Mesmo com a predominância de uma literatura urbana e urgente, de uma escrita quase cinematográfica e abundantemente visual, muitos são os escritores remando contra o óbvio, criando com uma argamassa mais consistente, buscando aprofundar e tirar os personagens do pastiche. Sem dúvida um imenso ganho para nossas letras.
Ricardo Lísias se encaixa nesse segundo time. As cinco novelas reunidas em Anna O. e outras novelas mostram personagens densos e muito bem construídos. Todos passam por crises psicológicas que os aprisionam em suas próprias neuroses. Estão literalmente encurralados e sem qualquer perspectiva de resgate. Vivem angústias profundas, mas, curiosamente, se alimentam da opressão, muitas vezes, por eles mesmos criadas.
O primeiro texto, Capuz, fala de um homem aprisionado e encapuzado em um cubículo. No segundo, Diário de viagem, outro homem viaja a Portugal para conhecer o túmulo do pai, o Filhodaputa. Em Corpo o personagem se veste com a melhor roupa para visitar uma mulher, possivelmente num manicômio, mas não controla as próprias e pequenas obsessões e manias. Anna O. é a pressão sobre um médico para que forje o laudo psicológico de um ex-ditador. Finalmente em Dos nervos o autor estabelece um estranho diálogo entre uma professora reprimida e um enxadrista que participa de um desafio.
Pelo enredo de cada uma das novelas fica claro que Lísias trabalha profundamente com neuroses e obsessões. E aqui não reside qualquer novidade. O novo está no tratamento que estes sentimentos recebem. Boa parte dos textos é narrada na primeira pessoa. E como os personagens-narradores não se dão conta da própria loucura, tudo passa a ser subjetivo, insinuado. O resultado é a cumplicidade do leitor que se obriga a criar e mesmo adivinhar soluções apenas sugestionadas. O interessante é que tal cumplicidade provoca certamente um dos pontos mais sólidos da ficção de Lísias: o desconforto do leitor que se sente inserido na trama narrada. E isso é também emocionante.
Talvez essa experiência seja despertada pela completa ausência de cotidiano, ou melhor, pela presença de um cotidiano partido em todas as tramas narradas. Mesmo quando estão em situações corriqueiras, dando aula, viajando num avião, respondendo correspondências, comendo, os personagens são ferrados pelo inusitado. De um momento para outro aparece um estranho mendigo, um homem com um relógio de bolso, um suposto bandido que se contenta em ficar em silêncio sentado no sofá da vítima.
Essas quebras de narrativa, surpreendentemente, não rompem com a verossimilhança. Isso porque o autor, de certa forma, é um pouco filho da literatura fantástica e irmão-siamês da literatura do absurdo. E com estas armas analisa a vida. Só que sua visão de vida está marcada pela necessidade de resistir aos desmandos dos senhores do poder.
Não senhores, não estamos diante de um realismo socialista tardio, embora muito exista de política no livro de Ricardo Lísias. Mesmo a violência da prisão e outras tantas que ocorrem não se encaixam na recorrência atual, onde, seguindo erradamente os passos brilhantes de Rubem Fonseca, nossos novos autores descrevem cenas de profunda crueldade mas que nada acrescentam à literatura e apenas despertam certo cansaço no leitor. Nestas novelas a violência surge como instrumento de reflexão sobre as várias faces da opressão psicológica e também política.
Retomando o lado político do livro, é necessário que se diga que não é o mero surgimento de ditadores como Salazar e Pinochet ou mesmo a descrição do desmoronamento do império socialista soviético que acrescenta cores ideológicas ao texto. Esta é também uma presença discreta e jogada à conclusão do leitor. Ricardo Lísias é um escritor hábil e provocador. Assim não se filia a nenhuma corrente partidária e ao mesmo tempo se faz mordaz ao apontar a inutilidade dos regimes, pois, está subliminarmente dito, todos nascem do espírito opressor dos homens.
Aliás, no posfácio, Leyla Perrone-Moisés salienta bem isso. “Ricardo Lísias é um escritor engajado e sua obra é política. Mas de que engajamento e de que política se trata? Não mais o engajamento dos escritores do século 20, baseado em ideologias e causas partidárias. O engajamento de Lísias é característico de sua época e de sua geração, um engajamento ao mesmo tempo pontual e amplo. Seus temas constantes — os mendigos, os sem-teto, os enlouquecidos pela miséria, os torturados pelas ditaduras e suas políticas — convergem todos para o repúdio a qualquer tipo de opressão ou violência”, escreve.
Do ponto de vista da escrita pura, Lísias não é um autor de frases largas, bem construídas. Há um aparente desleixo na sua carpintaria. Só que isso, fica muito claro, é intencional. Ele prefere trabalhar com frases quase feitas, com quase jargões cotidianos. É, parece, uma maneira malandra de não tirar a atenção do leitor do objetivo primário da prosa — impactar e assustar o leitor, deixá-lo diante dos absurdos criados na cabeça dos homens.
Em suma, um escritor que se preocupa com uma literatura feita para despertar paixões, medos e reflexões. Uma literatura que analisa a vida e que até por isso comove.