Literatura de jornal

Em “O homem que conhecia as mulheres”, Marcelo Rubens Paiva se mostra um autor incapaz de ir além das crônicas que escreve para a imprensa
Marcelo Rubens Paiva faz literatura como se escrevesse crônicas para jornal.
01/03/2007

No dia em que escrevo a presente resenha, dia 26 de fevereiro, uma segunda-feira, o jornalista Ruy Castro, autor das biografias de Nelson Rodrigues e Carmen Miranda, estréia como colunista da Folha de S. Paulo. A lembrança desse fato, aparentemente, nada tem a ver com o texto que segue. Aparentemente, insisto, porque é de Marcelo Rubens Paiva a obra que aqui será comentada. Entretanto, há de se notar que alguns fatos estão relacionados. Isso porque, sempre aos sábados, Marcelo Rubens Paiva pode ser lido n’O Estado de S. Paulo, grande concorrente da Folha, que, a partir de agora, terá Ruy Castro duas vezes por semana. Em termos de comparação, pode-se dizer que Marcelo Rubens Paiva está para Ruy Castro assim como a sardinha está para o salmão. Exagero? Uma leitura do último livro de Rubens Paiva, O homem que conhecia as mulheres, não deixa o leitor enganado quanto a isso. As diferenças não existem apenas no estilo, mas também no conteúdo do que está escrito. Marcelo Rubens Paiva funciona como o cronista da classe média de um jornal conservador. Nada demais, até aí. O problema é quando ele começa a se levar a sério, como neste O homem que conhecia as mulheres.

Por que se levar a sério?, alguém pode perguntar. A razão é simples. Lê-se no livro de Rubens Paiva, logo naquela classificação para o catálogo das bibliotecas, que a obra pertence à categoria de contos da Literatura Brasileira. E aqui a pergunta não escapa: por quê? A resposta para tal questão talvez esteja no fato de os textos do autor serem, em sua maioria, narrativas curtas. Ocorre, contudo, que para pertencerem ao gênero “conto” é preciso mais que um texto curto. A narrativa, nesse aspecto, deve obedecer a uma delicada espiral entre encadeando trama e personagens, não necessariamente se fixando nos elementos que marcam o nosso tempo, mas, pelo contrário, utilizando uma refinada técnica de concisão. Conforme escreve o professor Ivan Teixeira, no prefácio de Papéis avulsos, de Machado de Assis, imagina-se que o conto seja uma arte menor. Tal equívoco, contudo, não poderia ser mais absoluto, mais gigantesco. Assim, sobretudo numa época em que cada blogueiro e cada jornalista de caderno de cultura é um escritor em potencial, nada mais correto do que ajustar os conceitos dessa definição.

Dito isso, temos o livro de Rubens Paiva. A seu favor, para não dizer que não falei das flores, talvez seja interessante analisar O homem que se rendia às mulheres. Esta, sim, é uma história que surpreende o leitor com suas reviravoltas e com o tratamento bastante peculiar que o autor dá aos personagens, em especial ao protagonista, um homem solitário que se gaba de ter à sua disposição todos os tipos de mulheres, das jovens às balzacas, passando pelas mal-resolvidas e, claro, pelas certinhas demais. E, outra virtude, numa época politicamente correta, Marcelo Rubens Paiva não foge dos temas e dos diálogos menos pudicos. Trata, portanto, de sexo, mas sem melindres, de forma muito bem resolvida. Não busca exorcizar seus fantasmas fazendo da literatura uma terapia. A todo tempo, em O homem que conhecia as mulheres, elas são seu principal objeto de desejo, de assédio, de amor, de entendimento e de busca incansáveis e, em alguns casos, inatingíveis.

Ocorre que a beleza temática do livro perde força à medida que os leitores entram em contato com sua literatura de jornal. Pois é um texto que não ultrapassa as fileiras do cronismo descolado de certo jornalismo, como fazem, com semelhante talento, Xico Sá e Ricardo Freire. A constatação está nos próprios textos deste livro de Rubens Paiva. Na coletânea (é mais apropriado considerar a obra nessa perspectiva), percebe-se uma divisão dos “contos” (entre aspas, a partir de agora), a saber: Stereotype; O homem rendido pelas mulheres; O homem que conhecia as mulheres; Telefone, é para vocêI love SP. Em todos esses capítulos, nota-se que Marcelo Rubens Paiva tem um estilo demarcado. E não só isso: nestes textos, a unidade temática em torno da mulher torna-se ainda mais evidente a partir de seu olhar bastante peculiar em relação a elas, conforme se lê nas setenta primeiras páginas de Stereotype.

Cansaço no leitor
Ali, para todos os efeitos, está exposto o método de observação do escritor Marcelo Rubens Paiva. A partir dos hábitos, dos gestos, das atitudes, das posições políticas, das tatuagens, dos piercings e da maneira como se vestem, o autor desvenda (ou tenta desvendar), os mistérios que rondam a alma feminina. E ao contrário de fazer isso de maneira objetiva, séria e analítica, opta por um humor que se (des)valoriza justamente por realçar os estereótipos, daí o grande trocadilho do capítulo. Esse humor, entretanto, embora tente ser irônico e mordaz, ao questionar uma postura das engajadas e das neopatis, o formato cansa o leitor porque o recurso se esgota e a piada se repete muitas vezes. Em parte, isso se deve ao fato de Rubens Paiva exagerar na descrição e não alentar os textos de nenhuma dramaticidade, nada que lembre a construção de uma história breve. Antes, o que sobra são os cenários, os adereços; e a pergunta permanece: cadê a história?

Se nos estereótipos a trama inexiste, em O homem rendido pelas mulheres, temos uma história. Com começo, meio e fim. E digressões. E sacadas “geniais”. Mas nada que levante o texto da poeira factual da crônica para o algo mais elementar do texto genuinamente literário, sem as marcas do jornalismo, como a menção de fatos do presente, às conversas específicas de um período, entre outras coisas. A literatura, como obra de arte, não se pauta pelo jornalismo, mas faz da realidade um espelho para que se possa produzir uma cópia infiel do cotidiano. Não para reportá-lo, mas para subvertê-lo. Rubens Paiva, nesse aspecto, não consegue superar os ditames impostos por sua própria estratégia. Em outras palavras, enquanto opta por narrar os acontecimentos de Marcos, o protagonista desse “conto”, com alto grau de realismo, é incapaz de transformar o texto numa peça de ficção literariamente sustentável. Assim, todo o tempo a narrativa necessita dos estimulantes, a saber: os trechos que trazem sexo às páginas, alcançando um leitor, muitas vezes, desnecessário para a leitura e conivente para a imagem do jornal.

O texto que dá título ao livro é menos audacioso. Talvez por isso, é o que mais se aproxima do conceito de conto. E aqui não somente pelo tamanho, mas, sobretudo, graças à idéia circular que faz com que o autor trave um bom duelo com o que foi apresentado inicialmente. A história de um homem simples que conhecia os meandros da alma feminina. Todos, em determinado momento, querem saber como devem proceder com suas respectivas esposas, namoradas ou parceiras eventuais. Ao contrário dos demais, nesse texto, o humor está bem aplicado. O mesmo não ocorre, no entanto, com o “conto” Telefone, é você. Ali, toda a unidade temática que existe no texto anterior se perde numa colcha de retalhos, numa bricolagem de historietas sobre telemarketing — e de como realizar o atendimento.

No artigo sobre São Paulo, Rubens Paiva defende que a cidade é a capital das capitais. Faz elogios à diversidade cultural e aos muitos programas que podem ser realizados na ex-terra da garoa, hoje cidade autofágica, com a marginal do buraco. Aqui, muito mais do que nos outros, justamente porque o comentário também cabe ao cronista, o autor ultrapassa o tom e o conto fica longe da idéia de literatura. Nos anos 80, ficou célebre a frase de Arnaldo Jabor em resposta a Paulo Francis: “fazer cinema é um pouco mais difícil que escrever na Folha de S.Paulo”. Nesse sentido, a adaptação da frase é pertinente: fazer literatura, como quer agora Marcelo Rubens Paiva, é um pouco mais difícil do que ter uma coluna semanal no Caderno 2.

O homem que conhecia as mulheres
Marcelo Rubens Paiva
Objetiva
157 págs.
Marcelo Rubens Paiva
Nascido em 1959, é escritor, dramaturgo e colunista de O Estado de S. Paulo. Como escritor, já publicou Feliz ano velho (vencedor do Jabuti, em 1982), Blecaute, Bala na agulha, entre outros. Como jornalista, por muitos anos foi colaborador da Folha de S. Paulo, além de ter desenvolvido uma trajetória como autor de peças de teatro durante oito anos, em que se destacam as peças E aí, comeu? e a adaptação para os palcos de As mentiras que os homens contam.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho