Literatura crua e urgente

Em “O Brasil é bom”, André Sant’Anna mostra o valor da ironia em tempos de tensão social
André Sant’Anna, autor de “O Brasil é bom”
01/05/2014

Pudera, enquanto resenho, ser visto de terno e tom sisudo, pela tevê. Se me permitissem, pediria emprestado a voz de apresentador de um desses programas de crimes/entretenimento, cercado de helicópteros, choro e berros, urgente. Não estranhe além do necessário. Peço, por um parágrafo, o alarmismo. A cena, imagine: nossa aeronave sobrevoa um vilarejo miserável. Imagens, eu pediria. Me dê imagens desse absurdo! O que vocês verão — pausa; tiro os óculos, preocupado; esfrego os olhos — é impressionante. Corta para lá, gritaria. Na tela!

Seria a vez de apresentar os personagens, os entrevistados: o comunista de classe-média que odeia a classe C por invadir sua praia com carros, som alto e algazarra; o nacionalista que culpa o direitos humanos pelo atraso do país; o fã de futebol que atribui o sucesso da seleção de 70 à ditadura; aquele que se sentencia superior por ouvir jazz e planejar “uma viagem inesquecível para uma ilha na Indonésia que só ele conhece”; o torcedor cuja terapia é transferir as frustrações para o time do coração; o pastor falso otimista em busca do dízimo, entre outros. Um a um, eles discursam em primeira pessoa, com o aspecto sóbrio, de quem tem consigo a segurança de um futuro melhor. São, afirmam, a reserva moral do país.

Intercalados, esses homens e mulheres que poderiam participar de qualquer programa televisivo sensacionalista são, a bem dizer, alguns dos protagonistas dos contos de O Brasil é bom, do mineiro André Sant’Anna. Cheios de vícios de linguagem, opinam sobre os problemas nacionais por meio de ideias confusas, contraditórias, preconceituosas e mal ruminadas. Portam-se como se educados por uma cultura violenta de mídia, aquela em que o porta-voz — a exemplo do tal apresentador eufórico evocado linhas acima — ensina que a truculência e o pragmatismo radical os tornam mais esclarecidos, “de bem” e ativos em seus meios. Eles falam mal, muito mal.

A intenção de Sant’Anna é clara: mostrar, via clichês oratórios e frases feitas, que conhecemos alguém com discurso similar. A missão é bem-sucedida. Os contos inaugurais são desenvolvidos por meio de pensamentos tolos e imperativos que costumam pulular por redes sociais, propagandas e comentários de notícias, a exemplo de “consuma produto nacional”, “basta que cada um faça sua parte” e, como sugere o sarcástico título do livro, “o Brasil não é ruim”. O efeito é dum cinismo progressivo que chega ao ponto máximo no conto O que será que passa na cabeça de um sujeito nessas condições?, cujo interlocutor é um esquizofrênico, que, mesmo incapaz de seguir uma lógica, dispara, entre delírios e teorias desconexas, lugares-comuns como “é preciso haver uma hierarquia”, “separar o joio do trigo”, e impropérios como “não gosto de neguinha”. Não há muita diferença, sugere Sant’Anna, entre as ideias atordoadas de um doente mental e um homem são da classe-média.

Como mostra desde o lançamento de Amor (1998), que acaba de ser relançado pela Oito e Meio, e Sexo (1999), o autor sabe destrinchar como poucos a inconsistência das atuais reflexões sobre a sociedade brasileira. Parte disso pode ser explicada pelo seu ofício fora da literatura. Redator de publicidade, André Sant’Anna tem, segundo seu currículo online, larga experiência com marketing político. Não é exagero concluir que, desse processo de maquiar a realidade, de inserir elementos persuasivos em campanhas, por vezes de modo forçoso e artificial, o autor tenha se armado para realizar o movimento inverso, de desnudamento. O material cru — os fatos, a opinião popular, a semiótica destrinchada — está ao seu alcance, pronto para ser reconstruído. A subversão, para ele, se torna uma via dupla: como publicitário, Sant’Anna joga a favor dos partidos, dos clientes; como escritor, contra todos.

A ironia como gás lacrimogênio
Não há, na produção literária de Sant’Anna, quem escape da ironia corrosiva. Políticos, pobres, ricos, empresários, hippies, todos são colocados na lupa do ridículo e da falta (ou do excesso) de sentido. E o mérito do mineiro é saber inserir essa técnica discursiva em uma escrita sincera, direta. Sua ironia não é vazia — a tal ironia pela ironia, a qual tantos críticos culturais americanos se opõem. A ironia de Sant’Anna tem meio (estilo) e finalidade (mensagem crítica). É sua poética.

Faz-se necessário um contexto. Para muitos ensaístas e pensadores da cultura atual, a ironia não passa de um escudo, um fácil mecanismo de defesa que permite ao artista se isolar num lugar seguro: acima da inocência do mundano e, por outro lado, longe do sublime, duma obra sincera e redentora. De uns anos para cá, vê-se um apelo por uma arte nova, capaz de evoluir sem a interferência da ironia vazia e do niilismo que assola muitos autores pós-modernos. A literatura, ressalta(ra)m escritores como David Foster Wallace (1962 – 2008), deve se aproximar mais da criação do que da destruição; deve elevar o espírito humano, não rebaixá-lo.

Nenhum amante das artes questionaria tal preceito. Mas a questão é que a ironia de Sant’Anna faz sentido no momento de tensões sociais e culturais em que se encontra o Brasil, esse país que não é ruim. É evidente, na obra do mineiro, como a ironia funciona para criar um processo dialético, uma construção e uma suspensão permanentes, resultantes da contradição. Com a ironia, abre-se, para citar Hegel (e deixar essa resenha mais prepotente, desculpe), a possibilidade de mostrar que uma realidade sem valor não pode ser tomada a sério, e deve ser a todo momento invertida e pervertida. Eis o efeito o que o autor busca em cada conto ao falar de um esquerdista que se sente incomodado por pobres ou de um homem que não suporta os direitos do outro: subverter, anular, apontar para a negatividade impregnada no pensamento do brasileiro, seja lá sua classe.

Talvez a melhor definição da ambivalência desse tipo de ironia tenha sido proferida pelo crítico cultural americano Lewis Hyde. Ele diz: “a ironia só tem emprego emergencial. Com o tempo, ela se torna a voz do enjaulado que passou a gostar da cela”. No caso de Sant’Anna, lemos uma ironia urgente. O autor revela isso ao exibir o turbulento cenário político e social brasileiro: o consumo como forma de inclusão social, a educação pífia, uma nação de comentaristas que quase não lê, a cega busca por ídolos na fé e no esporte, os protestos difusos, o poder de compra como indicador de felicidade, entre outras críticas diretas e retas, que não exigem esforços de interpretação. Não há meio melhor para tratar desses temas do que um jogo de oposições, contrastes e sarcasmo. O trunfo, aqui, é conseguir fazê-lo por meio de uma escrita franca, imediata.

E o recurso irônico-emergente de Sant’Anna não está só no conteúdo. A forma como ele constrói seus contos, com erros de grafia e concordância, pouco vocabulário, raciocínios tacanhos e idas e voltas de trechos revela uma emergência dentro da própria literatura. É quase um manifesto contra o escrever bem onde mal se lê. Trata-se de uma produção literária de guerra, para não dizer de protesto. Uma tentativa rápida de conscientizar o leitor desses tempos de homens e discursos partidos.

O estilo cru e a poesia desleixada
No meio do fogo cruzado, o grande mérito de Sant’Anna é não se ater à ironia; com habilidade, ele consegue em alguns textos elevar o humor cáustico à poesia, ao sublime. Fica evidente em contos como o excelente Lodaçal, que já havia sido publicado pela mesma Companhia, no volume Essa história está diferente – Dez contos para canções de Chico Buarque, inspirada na música Brejo da Cruz, uma crítica à fome e à miséria infantil, tema ao qual Sant’Anna se mantém fiel.

No conto, os pequenos Chiquinho e Toninho, dois meninos do Brejo da Cruz que não têm o que comer, fumam charutos de maconha sob o luar e imaginam como seria o mundo fora dali, “da aldeia”, “do lodaçal”. Eles vão se transfigurando em personagens urbanos e deslocados, vários Chiquinhos e Toninhos da cidade, como o peão-de-obra, o valentão do bar, o mendigo, o ator homossexual nordestino, o lateral-direito que passa despercebido por times pequenos, o jornalista de baixa autoestima que não sabe interagir com os mais abastados, o policial embrutecido, o ladrão maconheiro, o evangélico inerte, o homem que aparece na televisão sem saber por quê…

O Chiquinho na televisão, num programa de televisão que o Chiquinho nunca tinha visto, o Chiquinho no programa de tarde sendo ridicularizado pelo apresentador por ter desafinado demais quando tentou cantar aquela música do Chico Buarque. O apresentador do programa de televisão ainda deu um chute na bunda do Chiquinho, assim, bem de leve, só de brincadeira, antes do Chiquinho sair do palco meio envergonhado, meio achando legal ter aparecido na televisão.

Há diversas passagens em que Sant’Anna transforma a forma irônica em conteúdo sentimental — uma sensação poderosa porém nunca muito clara ou bem definida. O leitor se constrange com a decadência dos personagens e, em certos momentos, consegue também se inspirar com a criação do autor. Poderia chamar a técnica de ironia rica, que gera efeito poético e reflexão. É uma expressão arriscada e bem por isso valiosa — maldita, ácida e bela.

Outra característica forte mantida por Sant’Anna é que a noção de espaço se dá por nomes de lugares conhecidos, sem descrições pormenorizadas: o andaime, a Baía de Guanabara, o trânsito, a portaria, o brejo, o estádio. Se na perspectiva romântica, a atmosfera acontece pela ausência de detalhes, no estilo de Sant’Anna, ultrarrealista, o clima dos contos ocorre por meio de traços descritivos desleixados, carregados de sentidos amplos, como “uma cara meio assim, pensando, babando, muito triste poesia”. A técnica, quase uma camuflagem, um esforço para não coser demais o texto, tem efeito particularmente eficaz e devastador em contos de temática político-social. Outra vez, é o meio como mensagem.

A repetição. A repetição.
O leitor de primeira viagem talvez estranhe o número de vezes que uma mesma palavra é escrita numa página. Não se trata de maneirismo. A repetição é quem articula as tramas de Sant’Anna. Nomes e situações são repetidos à exaustão. Um traço traz de volta outros traços. Como um jazz, o movimento é circular, não-linear, musical. Há também um componente estético aí: a repetição carrega um estigma de tédio, de um tempo em que os discursos não se desenrolam com facilidade. Sant’Anna brinca com isso o tempo todo e tem, como auge dessa experimentação, o livro Sexo, em que longos parágrafos são repetidos com pouca ou nenhuma mudança de palavras. Como quem diz: a vida segue — repetindo-se, engessada.

O grande defeito de O Brasil é bom é, por certo, a expectativa. O leitor de outras viagens talvez esperasse mais. Melhor: talvez esperasse se surpreender mais. Por mais que Sant’Anna reforce sua voz e seu estilo, não se nota evolução de seus trabalhos anteriores para cá. A fórmula é a mesma dos seus lançamentos anteriores de narrativas curtas. O melhor conto do livro, vale lembrar, não é inédito, fora publicado em 2010. Seria interessante que o autor procurasse equilibrar mais seu inegável talento estilístico com narrativas que apostam no sublime, como Lodaçal, e/ou pessoais, como o belo relato A história do futebol, em que ele, o próprio André, conta sua história ao se metamorfosear em craques como Jairzinho, Manfrini e Rivelino.

Talvez a razão para não se notar um crescimento do autor no livro seja a urgência de publicar o livro. É de se compreender.

Sant’Anna é sem dúvida uma das vozes mais originais da literatura nacional. Precisa ser ouvido. E, para isso, precisa falar e, sobretudo, voltar a se arriscar mais.

O Brasil é bom
André Sant’Anna
Companhia das Letras
190 págs.
Amor
André Sant’Anna
Oito e meio
92 págs.
André Sant’Anna
Nasceu em 1964, em Belo Horizonte (MG). É músico, roteirista, publicitário e escritor. Filho do também escritor Sérgio Sant’Anna, cresceu no Rio de Janeiro, onde tocou no grupo musical Tao e Qual durante a década de 80, e hoje mora em São Paulo. Estreou na literatura como livro Amor, de 1998, e depois publicou Sexo, em 1999, ambos de contos. Em 2006, lançou seu primeiro e único romance, O paraíso é bem bacana, e, em 2009, lançou Inverdades, de contos.
Guilherme Pavarin

É jornalista.

Rascunho