Literatura brasileira: modo de não usar

A corrente valorização cega da estrutura narrativa e da linguagem distancia ainda mais o texto literário do leitor comum
Ilustração: Felipe Rodrigues
01/04/2012

Parêntese
Antes de apontar uma das marcas da literatura brasileira atual, preciso estabelecer minhas fronteiras: não faço distinção de crítica e produção criativa, o que me leva a misturar procedimentos e ter um olhar ao mesmo tempo interno — na condição de escritor — e externo — na condição de quem acompanha o mercado editorial. O que estou tentando dizer é que a questão do gosto para mim é algo indissociável da crítica; o meu é um gosto bastante particular, que funciona como aposta em um determinado tipo de literatura. Não aprecio, no entanto, apenas a literatura que é irmã da minha. Felizmente, minha produção não me estragou a esse ponto, conquanto seja o centro de minha percepção. É a partir dela que tento chegar a outras obras que julgo importantes, mesmo quando bastante distintas da minha.

Toda crítica tem uma função ideológica que não pode ser ignorada. Ler este livro e não aqueles inúmeros outros equivale a um programa subterrâneo. Propor uma característica da produção contemporânea, como farei aqui, significa sistematizar um gosto, propondo uma face que vai excluir outras. Mesmo sabendo deste caráter bélico das opiniões, advirto que a minha está desde o início relativizada.

Fui formado, literariamente, a partir da leitura dos escritores (poetas, ficcionistas e cronistas) da geração de 1930. Saí das camadas mais incultas do mundo rural brasileiro para o convívio com grandes autores por meio desta formação, que foi totalmente acidental — esta trajetória de leitor está em meu livro Herdando uma biblioteca (Record, 2004). Mais do que temáticas, recebi de um grupo de autores modernos um pendor para a simplicidade de linguagem. Esta geração modernista se afastara do culto ao novo, a vanguarda pela vanguarda, próprio da década de 1920, e da emulação dos passadismos para propor como centro uma língua cotidiana. A índole da crônica contamina a linguagem criativa como um todo depois que estes autores, ligados inconscientemente ao projeto frustrado de Lima Barreto, buscam escrever mais próximos da fala.

Hegemônica em alguns momentos, esta escrita colada a situações de oralidade sofreu e sofre negações constantes. Mas parece ser ela a que melhor traduz uma maneira nacional de escrever, cujo ancestral mais remoto seria Memórias de um sargento de milícias (folhetim publicado entre 1852-1853), de Joaquim Manuel de Almeida, tendo como seu principal represente hoje o mineiro Luiz Vilela. Mas é toda uma vasta linhagem, com uma presença forte em nossa produção depois do Romantismo, não só na prosa.

Expresso paquiderme
Fechado este parêntese, posso afirmar que uma das marcas negativas que vejo na literatura mais recente é o peso de linguagem. Houve uma espécie de inflexão lusitana em nossa literatura, ganhando força uma tendência barroca contra a qual os nossos modernistas tinham se rebelado. Este peso pode ser visto principalmente em dois níveis: no uso de estruturas e também de palavras que se querem maiores do que as histórias. Ao eleger o suporte como espaço privilegiado do literário, perde-se a sua essência, que é a capacidade que a grande arte tem de emocionar todos os tipos de leitores, levando-nos a uma identificação com o outro. É a mesma coisa que, em uma metáfora tecnológica, valorizar o hardware em detrimento do software. Isso reflete uma visão patrimonial de cultura. O valor está na coisa que se possui, na linguagem que se conquista, e não no seu efeito.

Valorizar de forma cega a inventividade, a transgressão textual, os investimentos estilísticos, as novidades da área da comunicação etc., é uma maneira de separar a língua literária da social, criando uma casta que não se quer misturada ao homem comum. O drama deste tipo de raciocínio é que somos um país de não-leitores, no qual é tarefa tanto dos educadores e administradores da área cultural quanto, e principalmente, dos escritores dilatar a malha de recepção. Assim, o culto à linguagem de exceção, que em outras culturas mais letradas não deixa maiores seqüelas, na nossa gera um verdadeiro apartheid, que se manifesta dissimuladamente sob o rótulo de alta literatura. De um lado, o leitor comum; de outro, a elite hiperletrada.

A arte de levitar
Italo Calvino, que não pode ser acusado de obscurantista, coloca a leveza como a primeira das suas propostas para o terceiro milênio: “esforcei-me por retirar o peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar o peso à estrutura narrativa e à linguagem” (Seis propostas para o próximo milênio. Tradução Ivo Barroso. Companhia das Letras, 1990, p. 15). Na contramão desta compreensão do que seja o literário, a literatura brasileira vem aumentando o peso principalmente da estrutura narrativa e da linguagem. Estamos pensando de maneira acadêmica a literatura. O que significa isso? Que os estudos catedráticos das obras pautam a própria produção, uma vez que desejamos que se escrevam papers sobre nossos trabalhos. Na proposta de Calvino, o ideal é o escritor assumir um papel independente de filósofo-poeta, dizendo coisas de interesse geral numa língua prazerosa: “A literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso de viver” (Idem, p. 39). Num mundo tão marcado pelas tensões, a literatura seria um espaço de distensão, de arejamento, pela linguagem, mesmo ao tratar das angústias contemporâneas.

Não se defende aqui, e peço que não me entendam de forma afoita, a ausência de investimento em estrutura e linguagem, mas que isso não seja o fim último da obra. Que seja apenas um meio que nos conduza a algo além da própria arte.

Assim, e me perdoem o esquematismo desta análise, a luta que vejo hoje na literatura brasileira se dá entre o peso da linguagem e a leveza de viver.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho