Tem-se dito, com razão, que o livro Solo para vialejo, da poeta pernambucana Cida Pedrosa, vencedor do Prêmio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do Ano, inscreve-se no gênero épico-lírico. Não se pode negar, há um fio narrativo, uma travessia, e tudo é contado, ou melhor, cantado de maneira bastante lírica. Além disso, destaca-se o quão acompanhados de música fazemos essa travessia.
Claro, deve haver algo nesse épico e nesse lirismo contemporâneos que não apenas conversa com uma tradição, e sim que, antes, recoloca a tradição em outros termos. No caso particular desta obra, que recoloca a tradição em outras paisagens.
E para falarmos da paisagem, pensemos no título do livro. Está claro se tratar de uma música escrita para um único instrumento, o vialejo (uma gaita), que, é importante dizer, a poeta nunca aprendeu a tocar, “no vialejo azul que ganhei de meu pai quando/ menina e nunca aprendi a tocar”. Mas também podemos explorar outro sentido da palavra “solo”, o de chão. Trata-se de um chão para se pisar, atravessar, inscrever-se ao som do vialejo, ou ao som das memórias que esse instrumento evoca na poeta.
Tomado o sentido de chão, não se pode ignorar que nesse caminhar que é do litoral para o interior, “um horizonte que não é mar/ não é mar não é mar não é mar/ é pedra”, evoca-se várias vezes a expressão tupi “pora-pora-eyma”, que, numa tradução possível (Lemos Barbosa, 1951), remete-nos a algo como “terra sem habitante”. Essa expressão tupi aparece no livro quase sempre grafada três vezes seguidas.
pora-pora-eyma
pora-pora-eyma
pora-pora-eyma
O que pode indicar talvez um refrão ou um coro, ou mesmo um rito.
Mas não se trata de afirmar que o solo pelo qual a lira/vialejo de Cida Pedrosa nos conduz na travessia esteja desabitado, antes, trata-se de sugerir que aquele chão, o que nos leva do litoral ao interior de Pernambuco, tem o ritmo, as pegadas, os gestos, os sons e as cores de quem nele passou. No caso do que percebemos com o livro, nele passaram as mais diferentes gentes, “americanegroíndia”. Dito de maneira mais clara, não ser terra de ninguém não significa ser erma, devastada, desolada, talvez o contrário, esse solo tem os caracteres de todos que lá passaram cantando seus ritos, dançando seus ritmos. Esses ritmos, claro, muitas vezes são o da dor, o da separação. Pois nesse solo poético também estão matizadas e marcadas as cores e os sons da violência da diáspora, “entranhada no sertão as terras de/ bodocó se espalham em planos e/ paralelas margeando serras e segredos/ guardando fósseis de um/ tempo avoengo criando sons versos/ e narrativas de filhos que partiram/ de filhos que ficaram de filhos que/ chegaram de filhos que não sabem/ onde estão”.
Cena cartografada
Evidentemente o livro sugere um redesenho de paisagem histórica. Nessa terra de ninguém e de todos vemos e ouvimos outros ambientes geográficos e culturais se constituindo. Uma paisagem que vimos aprendendo com Edimilson de Almeida Pereira, ou seja, uma cena cartografada.
Os passos, as dores, as cores, os sons, a sensualidade das diferentes gentes que fizeram e ainda fazem o caminho do litoral ao interior de Pernambuco compõem a paisagem sonora e visual no poema de Cida Pedrosa. Isso ela nos traz por meio de misturas musicais que vão do cantor popular Ednaldo Queiroz, que mistura jazz com música flamenca, passam pelo ícone do sertão Luiz Gonzaga, por Jackson do Pandeiro, Roberto Carlos, invocatório popular de autoria desconhecida, trechos de poemas populares e mesmo passagens de Guimarães Rosa até desembocar no Solo poético. Vale mencionar também a bem-humorada relação de Creedance com Cruz e Sousa: “quando eu tinha 12 anos vi um show do/ creedance clearwater revival eles eram lindos […] no corpo vozes videntes velejando veias vozes/ vívidas de uma vila que vomitava volúpias e/ vingava os vermes”.
Em suma, podemos dizer que nessa estrada poética de Cida se cartografa a paisagem sonora de maneira antropofágica, pois além das cores e ritmos há também uma mistura de diferentes estratos culturais, do mais erudito ao mais popular; do mais eurocêntrico ao mais “americanegroíndia”. Neste sentido, poderíamos também sugerir uma paisagem tropicalista, mais do que tropical, e responder, com isso, à busca sempre falsa de uma cor local.
Intertexto
Apesar do bom humor presente no livro, o que é sempre um gesto bastante sofisticado de resistência política, é importante ler também nesse bonito Solo para vialejo a vertente lírica densa que coloca a poeta em diálogo com nossa melhor literatura.
Para além da presença do vaqueiro, muito marcante em narrativas de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, temos na pedra modernamente tratada por Drummond e João Cabral uma elisão da vida dura de gente sofrida do nordeste por meio da poesia e da música.
bem perto dali nas terras do ferreiro o poeta mar-
celino brígido empunhava o seu cavaquinho e em
noites de lua cheia fazia serenata para as pedras a
cada pedra uma canção a cada canção uma pedra.
Esse canto de pedra que, claro, dialoga com a gente severina que fazia o caminho inverso no livro de João Cabral — ou seja, do sertão para o litoral —, como se essas gentes se encontrassem no caminho, ou melhor em “pora-pora-eyma”, podemos escutar também, por exemplo, no canto das três raças de Clara Nunes e Paulo César Pinheiro, “um lamento triste sempre ecoou”. Ou mesmo na voz de Ricardo Aleixo, que poderia ler qualquer um dos poemas desse Solo em linda performance artística.
Coro ancestral
A pora-pora-eyma, que é também um lugar por onde se passa depois do planalto da Borborema, quando poetizada num livro como esse de Cida Pedrosa passa a ser o complexo lugar onde o algodão não pode ser lembrado apenas por sua suavidade, já que colhido por mãos escravas. Ele, o algodão, passa à condição de elo entre o cativo daqui da América do Sul com o cativo da América do Norte. Elo entre o blues e o forró. Entre a arte e esse outro modo de traçar histórias de um povo injustiçado, sequestrado, violentado.
O solo onde Cida nos convida a pisar com sua gaita de lembranças e canções não é um chão ermo, estéril ou desolado. Mais parece terreiro de múltiplo matiz, onde, em coro, muita gente pode cantar sua própria poesia. É obra para não deixar dúvida: quanto mais se obscurece os traços de uma cultura, mais impróprio ao cultivo da vida fica o chão.
Apesar do terceiro sentido que podemos ainda extrair da palavra solo, o de solidão, sentido esse que fica bem claro no poema final do livro (“me encontro e te encontro/ no ser/ ser tão assim/ sertão/ e só”), percebe-se como tom predominante algo muito bonito e característico do samba. O fato de que este, mesmo quando triste, sempre convida a cantar junto.