Lírica amorosa

Sonetos de Elizabeth Barrett Browning devem ser celebrados tanto pela qualidade literária quanto pelo retrato afetivo
Elizabeth Barrett Browning, autora de “Sonetos da portuguesa”
01/08/2013

Já no século 17 o nome de Catarina de Ataíde foi associado ao de Luís de Camões, sem que para isso houvesse quaisquer justificativas além das elaboradas por mentes tão eruditas quanto fantasiosas de figuras como Manuel de Faria e Sousa — que não hesitaram em sustentar, mesmo tomando por base obras incluídas no corpus lírico camoniano, que aquela dama fora a causa do desterro, devido a uma suposta intervenção de parentes insultados pela ousadia do poeta em cortejar uma mulher pertencente a um estamento superior. Divisando o vulto de Catarina sob a máscara da Natércia que freqüenta a obra de Camões, os seiscentistas alimentaram uma entre as inúmeras lendas que cercam o autor d’Os Lusíadas, esboçando a história de um amor interdito que atrairia incontáveis simpatizantes ao longo dos tempos.

De fato, se as narrativas lendárias nem sempre satisfazem as exigências da racionalidade científica, muitas vezes saciam a sede da sensibilidade poética. Foi uma das versões da narrativa do amor entre Camões e Catarina que chegou às mãos da jovem Elizabeth Barrett, graças ao texto introdutório publicado na edição da lírica traduzida por Lord Strangford — responsável por revelar ao público anglófono não apenas que o cantor do passado heróico de Portugal também compusera poemas dedicados ao amor, mas que sua própria trajetória biográfica, ao menos como asseguravam muitos camonistas, conhecera as vicissitudes decorrentes do sentimento não correspondido. O reflexo dessas vivências na obra poética de Camões inevitavelmente deixaria uma forte impressão nas subjetividades excitadas pela estética romântica, e Elizabeth não seria uma exceção. Catarina a Camões, poema por ela escrito aos vinte e cinco anos, desde sempre foi considerado uma de suas obras-primas; para além disso, permaneceria relacionado à vida sentimental da própria autora.

Catarina a Camões, afinal, despertaria no poeta Robert Browning lágrimas que o fariam indagar pelo que não haveria de comum entre o poema e sua autora: em que se assemelhariam a inglesa Elizabeth Barrett e a fictícia portuguesa Catarina de Ataíde? A impressão que tanto o poema quanto a projeção imaginária causaram em Robert pode ser mensurada pelo fato de que, em 1845, quando enviasse para ela uma carta expressando seu fascínio e admiração, não se furtaria a declarar: “amo estes livros com todo o meu coração — e eu te amo, também”. Quando, logo a seguir, mencionasse a ocasião em que quase chegara a ver Elizabeth, por intermédio do amigo em comum John Kenyon — tentativa frustrada devido à frágil saúde da jovem —, não é difícil ler nas entrelinhas quantas vezes esse encontro já não havia ocorrido; se não pessoalmente entre Robert e Elizabeth, ao menos entre Robert e Catarina, concebida como uma espécie de duplo daquela.

O amor que se mantém aceso e inabalável apesar dos obstáculos concretos, tema tão caro à sensibilidade romântica, viria a partir de então a tornar-se algo presente na própria vida de Elizabeth e Robert. A certeza de que Edward Barrett, pai da jovem, reagiria com hostilidade à idéia de que sua filha pudesse casar-se — como de fato ocorrera todas as vezes em que algum de seus filhos parecia predisposto a envolver-se afetivamente com alguém — fez com que a relação fosse conduzida secretamente ao longo de mais de um ano. Em 12 de setembro de 1846 — mais de um ano após o envio da primeira carta, a que se seguiriam outras 573, além de quase uma centena de visitas feitas às escondidas —, Elizabeth e Robert se casariam em segredo, fugindo para a Itália uma semana depois.

Valor literário
Os Sonnets from the portugueseSonetos da portuguesa, título adotado na tradução de Leonardo Fróes, que também assina o posfácio do volume — podem ser lidos como uma crônica lírica da relação afetiva entre Elizabeth e Robert; de fato, assim o ciclo poético foi celebrizado, tornando-se o registro literário da singular história de amor entre dois escritores. Cotejados com a correspondência trocada enquanto recrudesciam os laços que culminariam no casamento, os poemas sem dúvida revelam episódios do cotidiano dos amantes: talvez seja impossível ao leitor não deixar-se envolver pelos episódios de entusiasmo e oscilação característicos de toda relação amorosa, ou não fascinar-se pelo modo como qualquer trivial acontecimento pode receber um sentido singular no âmbito dessa dinâmica afetiva. O próprio jogo de ocultação já presente no título do ciclo — sobretudo pelas obscuridades que encerra na língua original — incita a essas tentativas de decifração.

Todavia, reduzir a isso os sonetos de Elizabeth é um grave equívoco. A tendência à leitura biografizante pode impedir que se reconheçam suas qualidades propriamente literárias; isso efetivamente ocorreu ao longo dos tempos, obstando a percepção de que os sonetos são a obra de uma autora profundamente familiarizada com a tradição literária ocidental — que por meio dela demonstra uma capacidade ímpar de renovar a forma poética e a própria dicção lírica amorosa, ademais manejando habilmente elementos derivados do código petrarquista. A esse respeito, vale ressaltar que Elizabeth Barrett Browning é um dos maiores nomes da poesia do século 19, e não por acaso: além do ciclo de sonetos e de Catarina a Camões, sua pena produziria também os versos políticos de Casa Guidi windows, poema de fatura experimental sobre a insurreição italiana contra a dominação austríaca que testemunhara de sua própria residência; e Aurora Leigh, poema-romance de orientação feminista, que sintetiza elementos líricos e narrativos para tematizar os dilemas das mulheres em sua luta emancipatória.

Outros, antes de Leonardo Fróes, dedicaram-se a verter os sonetos de Elizabeth Barrett Browning para a língua portuguesa — entre eles Manuel Bandeira, que traduziu quatro dos poemas; o português Manuel Corrêa de Barros chegou a verter todo o ciclo. O trabalho de Fróes chega em boa hora, propiciando entre nós a divulgação da obra de uma das mais importantes escritoras da história. Conquanto seja nítida, em muitas das versões, a preocupação do tradutor em manter-se próximo do texto original — o que demonstra respeito tanto ao leitor quanto à obra de Barrett Browning —, em diversos momentos isso é sacrificado em prol de uma tentativa de estruturação métrica e rímica que não parece justificada, na medida em que nem as estruturas dos sonetos originais são mantidas na tradução, nem os poemas traduzidos seguem um padrão; por conta disso, talvez fosse mais proveitosa a opção por versos brancos, por exemplo. Ainda assim, é louvável o esforço de Fróes em difundir a obra de uma autora cuja ausência nas estantes brasileiras não pode ser suficientemente lamentada.

Sonetos da portuguesa
Elizabeth Barrett Browning
Trad.: Leonardo Fróes
Rocco
128 págs.
Elizabeth Barrett Browning
Nasceu em Kelloe, Durham, em 1806. Publicou seu primeiro livro de poesia, The battle of marathon, em 1820. Em seguida vieram An essay on mind, with other poems, Prometheus bound e The seraphim, and other poems, entre outros. Morreu em 1861, em Florença, onde vivia com o marido, o poeta Robert Browning, e o filho, Pen.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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