“Sou coreógrafo porque não sei fazer outra coisa” é a frase com que Maurice Béjart (1927-2007) decidiu iniciar seu livro de memórias (Um instante na vida do outro), tentando colocar em palavras a dimensão absoluta que permeou sua vida inteira: a dança.
Maurice Béjart (nome artístico escolhido em homenagem à atriz Armande Béjart, esposa de Molière) renovou a história dessa linguagem, combinando a tradição do balé com as mais recentes expressões da dança moderna e, ao longo de sua carreira, dedicou-se também ao teatro, à ópera, ao cinema e à escrita. Teve diversos livros publicados, entre os quais Cartas a um jovem bailarino, que chega agora ao Brasil.
A dança e a escrita atuam e se expressam dentro de esferas diferentes — o corpo em movimento e a palavra —, e seu encontro não se dá com muita frequência, acontecendo sobretudo no caso de artistas da dança que querem fazer viver sua experiência e suas reflexões por meio de um texto, ou quando poetas e ensaístas decidem investigar o universo do corpo e do movimento pela palavra.
Béjart escreveu muito, reunindo relatos pessoais e considerações a respeito de sua arte, pensando a dança em diálogo com outros saberes. A inclinação pelos estudos filosóficos e literários — a influência de seu pai, o filósofo Gaston Berger, foi determinante em sua formação — reverbera no trabalho coreográfico e na escrita, mesclando-se com o interesse pelas culturas orientais e pela espiritualidade, que se consolidou depois do encontro com o Islã, da descoberta da mística sufi e das conversas com mestres indianos, que modificaram sua perspectiva sobre o mundo e o movimento.
Retomando as cartas que Rilke escreveu a um jovem autor, reunidas na publicação póstuma Cartas a um jovem poeta, Béjart escolhe o gênero epistolar para dialogar com seu interlocutor — real e imaginário, bailarino e não bailarino — e consigo mesmo, oferecendo não apenas uma coleção de histórias e conselhos práticos para se aprimorar na arte do balé e reinventá-la, mas um mapa de pontos luminosos, refletindo sobre o que aprendeu a respeito de si e do outro por meio da dança.
Em uma das cartas — são sete ao todo —, o coreógrafo fala sobre uma viagem à Índia e sobre a intenção de conhecer um autêntico mestre iogue, capaz de guiá-lo por um novo caminho. Ele queria, de fato, encontrar uma prática que pudesse renovar sua percepção física, expandir a consciência e até aprimorar seu trabalho, mas, dialogando com o mestre, acabou descobrindo que já tinha tudo o que precisava: a barra era a sua ioga. Na segunda carta, ele escreve: “Desde esse dia, a barra não está ligada a uma técnica, a um estilo, a uma forma específica de dança para mim; ela é uma ioga que constrói meu corpo e minha mente e me abre para a possibilidade de tentar entender todas as outras formas de dança, porque a dança é só UMA”.
Através da disciplina e da repetição diária, a barra prepara o corpo e a mente, permitindo afinar a técnica e a consciência física. Ela é também a testemunha silenciosa de uma metamorfose que acontece todo dia e que favorece uma consciência expandida — “a visão interior do olho do corpo” —, alimentando a comunicação entre espaço interno e externo no universo de quem dança. O espelho, por outro lado, não passa de um amante traiçoeiro, que gruda nos olhos e na mente: “suga, engole, devora” e restitui uma percepção de si ilusória e frágil.
Mergulho completo
O bailarino e a bailarina precisam conversar honestamente com seu público (e consigo mesmos), convidando para um mergulho completo, sem hesitações. A coreografia tem que ser assimilada a ponto de parecer um improviso, uma criação que se manifesta pela primeira vez, e isso acontece através do domínio técnico e da percepção intelectual. “A grande bailarina, depois de dez anos de esforços diários, executa passos e figuras extraordinários por sua beleza e sua execução perfeita. A verdadeira bailarina, depois de dez anos e mais esforço diário, esquece a técnica (que seu corpo, no entanto, não esquece) e se diverte, pula, dança e se joga em tudo aquilo que o movimento a inspira a fazer, assim como a criança!”. Béjart ressalta que a técnica é um tipo de informação externa que, uma vez sedimentada, se torna intrínseca ao corpo, mas não é sinônimo de dança: sempre um meio e nunca um fim.
Suspensa entre técnica e instinto, a dança materializa aquela “mistura surpreendente de disciplina e liberdade”, em que a precisão e o rigor integram o intuito livre da experimentação, em oposição à permissividade, que representa “o pior obstáculo para um artista”, pois não alimenta, mas reduz as respostas da arte.
A dança é múltipla e pode ser vivida de várias formas, com diversos graus de intensidade e de aplicação. É uma linguagem artística — e, por isso, jamais poderia prescindir da noção de estética —, mas pode se transformar também em um ritual que conecta indivíduo e coletividade, ou numa prática de meditação que perpassa corpo, mente e espírito. Ela está em qualquer lugar, o tempo inteiro: nos gestos cotidianos, nos animais, nas paisagens e até nos objetos em movimento.
Aprendi a dançar suando numa sala de ensaio,
Aprendi a dançar observando meus gatos, […]
Aprendi a dançar olhando minha avó preparar sopa de legumes,
Aprendi a dançar assistindo a grandes bailarinos no palco,
Aprendi a dançar me exercitando na barra,
Aprendi a dançar nadando no mar.
Junto com o processo de alienação da natureza, do outro e, enfim, de si mesmo (Marx, Trabalho alienado), o indivíduo da modernidade também desaprendeu a dançar. Béjart sublinha a urgência de voltar a práticas vinculadas à dança e ao movimento, desautomatizando as cristalizações da percepção e sacudindo o sedentarismo do dia a dia.
Em um balé — escreve Béjart —, o mais importante não é a coreografia, mas o intérprete, porque, sem ele, nada existiria. Diversamente de uma coreografia ou de um improviso, um poema sobrevive ao tempo da própria redação, mantendo-se acessível independentemente do corpo de quem escreve ou declama (em seu suporte original ou em seu meio de reprodução). A dança, por outro lado, é a celebração do presente, a captura do instante: não existe senão no corpo em movimento, que, potencialmente infinito dentro de seus limites, possui sabedoria e memória que funcionam junto com a mente, mas que também a precedem e transcendem.
Assim como em seu trabalho coreográfico, Béjart consegue se despir de artificialidade e redundância; em suas cartas, ele também opta por uma abordagem límpida e direta. Combinando materialidade do corpo, relatos pessoais, pensamento filosófico e fragmentos poéticos, ilumina um percurso feito de harmonia e contrastes: o sentimento de plenitude e a falta, a ambiguidade e o desejo, que, ao longo de sua carreira, conseguiu transformar em dança.