Este aprendiz, quando aluno de mestrado, conheceu um professor que disse, não sem a devida pompa e arrogância, que pesquisava a(s) diferença(s) entre o regional e o universal em literatura. Para ele, isso era regional; aquilo, universal. É dos tais que separam literatura masculina e literatura feminina. Até quando? Com sua licença, estimado leitor, naquele tempo e atualmente, este aprendiz entende tal preocupação e referida pesquisa como grandes tolices.
Prefiro Todorov: “Literatura não é teoria, é paixão”.
Desconheço criação, pelo menos no campo das artes, que não traga em sua origem uma grande paixão.
Cabe deixar bem claro que teoria e paixão podem andar juntas. Desde que — e aqui reside a questão que o tal professor bem que poderia tomar para si — acompanhadas da imaginação.
Exemplo: Ao que minha vida veio…; autor: Alckmar Santos. Narrativa que apresenta uma sintaxe particular — não digo tratar-se da fala do homem do povo, ou do caipira, muito menos do trabalhador rural semi-alfabetizado, não pretendo ser tão raso.
O cenário lingüístico é outro. O cuidado com a linguagem chega a ser comovente. Não podemos dizer que este ou aquele personagem fale errado. Por mais exigentes que sejamos. Por falar nisso, a lingüística nos impede de fazer essa distinção, certo e errado, linguisticamente. Lingüísticas à parte; as personagens de Alckmar podem não fazer uso do mesmo léxico que você, erudito leitor, e este aprendiz, no entanto, são incapazes de truncar a recepção, de turvar o sabor dessa requintada trama. Bem diferente de Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto, que exige um dicionário de termos campeiros. O que não extrai o tédio da maioria de seus contos.
Alckmar conta uma história sofisticada, exige total atenção, mas sem afetações, sem os excessos barrocos de Saramago e seus nefastos imitadores.
Tio Eli deixou um bilhete: Viva o amor
E pulou do ponto mais alto a que pôde chegar da sapucaieira maior das três que por lá havia.
Ao que minha vida veio… tem seu início lá pelos anos 30 e se estende por quatro décadas de intensa criatividade narrativa, onde o privilegiado leitor entra em contato com cenários e um elenco de personagens e acontecimentos, reais e fictícios — suicídio de Getúlio Vargas, por exemplo —, todos coadjuvantes da trajetória do tropeiro Juca Capucho.
O autor não recorta a realidade para depois colá-la nas páginas do livro, não, a opção é outra, mais arriscada. Alckmar transforma, recria um mundo, experimenta, arrisca, inventa.
Impossível não lembrar Guimarães Rosa, cenário, personagens, linguagem, a relação do homem com a terra, com a sua terra. Relação que tem tanto poder de fertilizar ingenuidades, mas também pode produzir abjetos jagunços. Embora nestes, em Guimarães Rosa, também se possa notar traços de ingenuidade.
Mas Alckmar soube equilibrar a questão da linguagem, não impede a fluidez narrativa, com um sutil suspense que perpassa essa brilhante história, um policial/existencialista ambientado em região jamais explorada para tal fim. Quando alguém arrisca, inquieto leitor, gera o inevitável: ciúme. É isto: este aprendiz, terminada a leitura, sentiu uma pontada de inveja envolta em celofane de admiração.
Voltemos ao que interessa, ao luxuoso cerne da questão.
A convivência harmoniosa da linguagem erudita e popular, a opção pela rusticidade sem perder a beleza das frases, os diálogos repletos de musicalidade da fala dos tropeiros são suaves gritos de alerta: olha aqui, a literatura não acabou, ainda há o que inventar, vale a pena pesquisar a linguagem…
Ao que minha vida veio… é uma carreira em cancha reta. O cavalo, chamado Imaginação, é um ganhador, o jóquei precisa vencer. O troféu: conhecer sua origem, descobrir o tesouro mais valioso; nomes de pai e mãe que lhe são negados.
Caro leitor, Ao que minha vida veio… é um livro de se ler e reler.