Sob a convicção de que alguma iluminação pode vir, não só de teorias, mas também da forma como certos homens e mulheres levam suas vidas, Hanna Arendt reuniu em Homens em tempos sombrios ensaios e artigos sobre pessoas que viveram a primeira metade do século 20 — sobretudo na ascensão dos regimes totalitários. Escreveu desses tempos que “tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo”.
O mesmo não acontece em eu nunca fui ao brasil, antologia inédita e em edição bilíngue com poemas de Ernst Jandl (1925-2000), em que a experimentação sonora e visual dificulta a construção de um sentido imediato ou direto, e constitui poemas que têm lógica interna própria, como um jogo.
No poema calipso, cujos versos iniciais (“não fui not yet/ ao brasil/ pro brasil/ eu uuld laik to go”) dão nome ao livro, lê-se também: “já que entendo/ um tan’ de languages/ quero entender também/ a language do rio”. O poema, originalmente escrito em alemão e inglês, aponta para procedimentos de tradução e para limites das “regras” quanto ao manejo da linguagem.
Para se familiarizar com os procedimentos de Jandl, vale ver a performance gravada de um de seus poemas mais conhecidos, schtzngrmm, disponível no YouTube.
Da palavra alemã schützengraben, que significa “trincheira”, Jandl retira todas as vogais. O que parecia não ter um sentido visível ganha corpo somente na audição do poema, quando é possível identificar, como escreve a pesquisadora Fabiana Naura Macchi em sua tese de doutorado sobre o poeta, “uma massa sonora que o leitor/ouvinte associa aos sons durante um bombardeio”, cena de guerra que poderia ser observada de uma trincheira. O poema não está no livro, talvez por uma questão de “traduzibilidade”. Myriam Ávila, que fez a tradução e seleção para a antologia, menciona que “certos jogos linguísticos baseados muitas vezes na pronúncia do alemão austríaco eram praticamente impossíveis de reproduzir”.
Haroldo de Campos, poeta concretista e tradutor brasileiro, a partir da tese de que a tradução de textos criativos é sempre recriação, escreve que “não se traduz apena o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma” — suas propriedades sonoras, imagéticas, etc. O significado seria um demarcador de parâmetros para o processo.
Assim, existiria uma diferença entre a tradução literal de conteúdo informativo, documental, para essa tradução cuja informação é “estética”. Já que um mesmo conteúdo informativo pode ser transmitido de várias maneiras (“tenho fome”, “preciso de algo que me sustente”, “quero comida”), mas “a informação estética não pode ser codificada senão pelo artista”, e por isso tem fragilidade máxima. Por exemplo, dizer que um poema de Ernst Jandl fala sobre guerra não dá no mesmo que ler o poema. E ler o poema em alemão nunca será o mesmo que ler sua tradução em português, pois será outra informação estética, outro poema, ainda que análogo ou semelhante àquele em sua forma original.
Um exemplo é o que acontece em guerra e tal, da primeira parte do livro:
cabana do pai tomás
pai tomás
ai tomás
a tomás
sssssssss
aaaaaaaaaaaaaaaaaaa
t
o
t
o
m
t
No original, cabana do pai tomás é onkle toms huttle (remete ao livro Uncle Tom’s cabin, publicado nos Estados Unidos em 1852, associado contraditoriamente ao abolicionismo e a estereótipos depreciativos a respeito de africanos e descendentes escravizados). “Onkle toms huttle” é o nome de um conjunto habitacional construído em 1926, em Berlim. No poema, o primeiro verso traz o sentido estável de abrigo, concreto, intacto. No segundo, some a cabana. Depois, “pai” vira “ai” (onomatopeia de dor), até restarem letras, que representam sons desarticulados. É curioso que a palavra formada nos versos finais, “tot”, em alemão, que signifique “morto”, em português.
Impotência e poder
Na entrevista que acompanha o livro, Ernst Jandl menciona não ser possível criar um poema sem a possibilidade do jogo, tanto para o leitor como para o autor. “Porém, quando se trata do sinônimo ‘brincadeira’ — o que já me foi imputado algumas vezes —, aí é algo de que pretendo me afastar inteiramente. Porque o jogo segue regras. Podem ser, como no xadrez, regras que existem há séculos ou regras que eu mesmo crio na hora de escrever.”
Em uma conferência para estudantes nos EUA, em 1995, Umberto Eco, semiólogo, filósofo e crítico literário italiano, compara o “fascismo” a uma noção de “jogo”, na medida em que, tanto em um como no outro, não é necessário um sistema de características identificáveis imediatamente e sempre idênticas — basta uma ou a combinação de algumas delas.
Entre as características que indiciam o fascismo, está uma atitude de desprezo a formas de vida não normativas e ao feminino, o que implica também em desprezo pelo que é tido por fraco, frágil, e uma necessidade constante de imposição de força e na exaltação de valores patriarcais.
Para determinadas teorias, esse elogio da força nasce do apogeu de um ideal de sujeito moderno. O que, sob a ótica da experiência, é pensado pela filósofa americana Susan Buck-Morss como a construção de um corpo impenetrável aos sentidos, que encontra sua potência na falta de resposta corporal — esse sujeito, “ao abandonar os sentidos abandona também o sexo, claro”. Seria nessa forma de castração que o ser então se geraria como masculino, virando ele próprio o falo ao abrir mão se sua sensibilidade. Exacerbação do próprio poder e impotência caminhariam juntas.
Essa vontade de controle absoluto sobre si e os outros pode aparecer como exaltação a armas de fogo, por exemplo. Em gravação da reunião ministerial divulgada no dia 22 de abril, ocorrida em meio à pandemia mundial do novo coronavírus, um dos pontos levantados foi o de que era preciso armar a população para que ela pudesse ter “liberdade” de estar nas ruas. No dia seguinte à reunião, o governo publicou uma portaria aumentando a quantidade permitida para compra de munição no país, mas não discutiu maneiras de conter o avanço da covid-19, que, segundo dados do Ministério da Saúde, já mata pelo menos uma pessoa por minuto no Brasil.
O jogo entre potência e impotência é mantido pelos governos autoritários por meio de um jogo de linguagem. Hanna Arendt escreveu que a função do âmbito público é iluminar os assuntos de interesse das pessoas, mas que as sombras chegam quando “essa luz se extingue por ‘fossos de credibilidade’ e ‘governos invisíveis’, pelo discurso que não revela o que é, mas o varre para sobre o tapete”.
Atenção à fragilidade
No poema fodinha, em eu nunca fui ao brasil, lemos:
dr. fodinha
prof. dr. fodinha
exmo. sr. prof. dr. fodinha
exmo. sr. prof. dr. honoris causa fodinha
Aqui, uma progressão de titulações de saber e poder caracteriza alguém, o fodinha.
A contraposição do decoro dos pronomes de tratamento com a zombaria no nome se firma e aumenta, sem quebra de expectativa. Ao mesmo tempo que os versos se alongam no acúmulo de títulos, a contradição do nome em diminutivo realça essa disparidade. Tanto mais se mune do que deveria atestar seu poder, mais o fodinha realça a própria impotência, que reverbera.
Ao partir da materialidade da linguagem — o enunciado, a palavra, o som — para explorar aspectos não imediatos ao sentido, a poética de Ernst Jandl e sua recriação pela tradução possibilitam pensar uma potência pela fraqueza, ou pela fragilidade.
Não entoar liricamente sua força (como em pequeno manifesto geriátrico, onde escreve uma conversa com o médico “o que o senhor no momento/ acredita ser sua decadência/ intelectual será/ por sua decadência física/ mais do que compensado”), nem estabelece vínculos de sentido imediato; são gestos que inserem elementos totalmente incontroláveis em seus poemas concreto-experiementais.
Os jogos, sistemas com lógica própria, aqui, não pretendem convencer o leitor de sua força ou esfumaçar intenções ocultas. Ao assumir sua fragilidade, não recalcando-a, evitam fazer de si, do outro, seu refém.