Linguagem colorida

Alejo Carpentier retrata a Revolução do Haiti pelo prisma do “real maravilhoso”
Alejo Carpentier por Osvalter
01/07/2010

Num primeiríssimo momento, sobretudo por conta da leitura do primeiro capítulo, o leitor pode — equivocadamente — até considerar o romance O reino deste mundo, de Alejo Carpentier, complicado e sua linguagem, rebuscada. É preciso de algum tempo, talvez duas leituras desse capítulo, para se acostumar à obra. Com o tempo se perceberá que a linguagem não é, de maneira alguma, rebuscada, mas colorida, de forma a inserir o leitor num contexto e numa época e, mais, num gênero específico: o realismo maravilhoso.

O leitor, no começo de sua leitura, se deparará com vários personagens: Ti Noel, jovem escravo de Monsieur Lenormand de Mezy; Mackandal, também escravo, e contador de histórias que perde o braço na moenda de cana; Mamãe Loi, bruxa velha que vivia só, em cuja casa Ti Noel e Mackandal se encontravam para tramar… Mas contra o quê? Contra quem?

Toda a narrativa de O reino deste mundo é composta de revoltas, revoluções, pequenas guerras travadas entre exploradores e escravos. Sendo assim, é mais do que óbvio, mesmo para um leitor que não conhece a história do Haiti nem nunca tenha ouvido falar do romance de Carpentier, que Mackandal, com a ajuda do seu admirador, que pouco sabe das coisas, maquina contra os brancos. No entanto, Mackandal some sem deixar vestígios. Para Ti Noel, a partida de Mackandal leva consigo todo aquele mundo evocado em suas narrativas.

Mas é um sumiço temporário. Algum tempo depois, a velha da montanha trazia a Ti Noel uma mensagem de Mackandal. E começam a concretizar, então, o plano “diabólico”, cujo objetivo era acabar com os brancos e criar um grande império de negros livres em São Domingos. Gados, novilhos, ovelhas e, depois, pessoas e famílias inteiras, donas de posses, são envenenados. Entretanto, essa era apenas uma preparação para a grande revolta. Como fora descoberta a procedência do veneno, que se alastrara por mãos e ordens de Mackandal, precisavam capturá-lo. E o capturaram.

Armaram, em praça pública, uma fogueira para os escravos revoltosos, porque desta vez a lição seria dada com fogo e não com sangue. Entre eles, Mackandal seria queimado. Queimaram Mackandal:

Chegou a tal ponto o estrépito, a gritaria, o tumulto da multidão, que muito poucos viram que Mackandal, agarrado por dez soldados, era enfiado de cabeça no fogo, e que uma labareda alimentada pelo cabelo em chamas abafava seu último grito.

Sim, Mackandal morrera, mas iria voltar, acreditavam os negros, que continuavam a reverenciá-lo, transmitindo suas narrativas aos filhos, ensinando-lhes as cantigas muito simples que compuseram em sua glória. Enfim, embora afastado destas terras por tarefas de importância, Mackandal regressaria a elas quando menos se esperasse. E sua influência — a influência do mito — incitava os negros, cansados de serem escravizados, a se reunirem, a tramarem, e a buscarem alternativas para uma vida melhor.

A revolta
Nesse entremeio, aparece na reunião dos negros o personagem Bouckman, o jamaicano. E nessa reunião, em plena madrugada de chuva e frio, fica determinado que o sinal seria dado oito dias depois. Sinal? Sim, o sinal para a concretização do plano. Enfim, a revolta. E essa revolta traz em seu bojo não as mudanças óbvias, mas sim as mesmas arbitrariedades dos brancos, mas agora praticadas pelos negros, detentores do poder.

(Ti Noel) subiu ao primeiro andar da vivenda, acompanhado por seus filhos maiores, pois fazia muito tempo já que sonhava violentar Mademoiselle Floridor, que, nas suas noites de tragédia, exibia, sob a túnica ornada de lacinhos, um par de seios em nada maltratados pelo irreparável ultraje dos anos.

Ações causadas por vingança? Raiva contida? O autor não nos apresenta justificativas. Ele apenas narra. E nas entrelinhas da narração dos fatos — fictícios, inventados? — está a grande ironia de Carpentier. Eis a grande ironia do romance O reino deste mundo: frustrar aquele leitor que simpatiza com os negros e espera que eles se revoltem e quebrem as amarras da escravidão, o que em alguns momentos da narrativa acontece, mas não é o bastante para incutir neles a aura de vítimas ou heróis. Por mais que se revoltem, o que lhes dá certo heroísmo, eles continuam sendo — sobretudo em sua maldade e arbitrariedade — seres humanos (antes da revolta, seres humanos, porém negros. Depois da revolta, negros, porém seres humanos).

A anarquia entronizara-se no mundo. Os negros tinham violentado quase todas as moças das famílias distintas da Planície. Depois de terem rasgado tantas camisolas rendadas, de terem refocinhado sobre tantos lençóis de linho, degolado tantos feitores, já não havia mais como contê-los.

Mas foram contidos, e rapidamente — a horda de negros, em dois dias tinha sido vencida. E a cabeça do jamaicano Bouckman já se achava cheia de vermes, esverdeada e boquiaberta, no mesmíssimo lugar onde se tinha transformado em cinza fétida a carne do maneta Mackandal. Era a contra-revolta dos seres humanos de cor branca. O autor, em seu romance O reino deste mundo, não cansa de nos oferecer reviravoltas atrás de reviravoltas, a partir do que é possível perceber a sua preocupação com o enredo, e não apenas com a linguagem, como muitas narrativas modernosas publicadas por aí.

Ademais, entra em cena (chega à cidade) Paulina Bonaparte, esposa fogosa (com os outros) do General Leclerc. Após dias de prazeres e alegrias, o cabeleireiro francês que penteava seu cabelo tomba em frente dela, vomitando sangue — um horrível desmancha-prazeres começa então a zumbir no sonho tropical de Paulina Bonaparte. Aí, Leclerc, o seu marido, morre. Paulina esteve então à beira da loucura. O trópico, agora, lhe parecia abominável. Paulina decidiu partir para França. E com a partida de Paulina, desapareceu também o bom senso na colônia.

Contos avulsos
Os capítulos do romance O reino deste mundo são quase que contos avulsos, em que o único personagem condutor da narrativa é Ti Noel, embora não apareça em todos os capítulos. É a partir da sua volta, tanto à narrativa quanto à cidade, à antiga fazenda de Lenormand de Mezy, seu ex-dono, agora morto, que retorna também o eixo central do enredo: as revoltas dos negros, e as conseqüências delas para o povo. E a conseqüência, que ao voltar agora Ti Noel divisava, eram negros prisioneiros dos próprios negros num reino de negros, onde o rei era Henri Christophe, o mesmo que tinha sido cozinheiro na Rua dos Espanhóis. Mesmo velho, Ti Noel também se torna escravo nesse reino.

E para tal, para o reino dos negros em que o rei era negro, se construía a Cidadela La Ferriére, com sua pretensão à independência, seu monarca, suas finanças e sua pompa real. A Cidadela seria o próprio país: o país dos negros? Sim, mas — ironicamente — à custa do trabalho escravo dos próprios negros. Quando a Cidadela estava quase pronta e de carregadores de tijolos já não precisava, Ti Noel deixou de ser útil à obra e foi liberado.

Henri Christophe continuava em sua fúria ditatorial: condenara a morrer dentro de uma parede recém-rebocada, pelo crime de querer voltar à França, Corneille Breille, o seu confessor, exatamente ele que conhecia todos os seus segredos, todos os segredos da Cidadela. Um dia de lição de liturgia do frade espanhol Juan de Dios Gonzáleos, substituto de Breille, o fantasma deste aparece para Christophe, deixando-o sem fala. Em poucos segundos, o rei jazia estendido de costas no chão, com os olhos fixos nas vigas do teto. Doente, de cama, custando a andar, os seus duques, barões, generais e ministros o atraiçoavam, debandando. Além da rainha e das princesas, apenas cinco moços negros permaneceram fiéis ao rei e aguardavam sentados no mármore frio da escadaria.

Mas retumbaram os tambores dentro da noite. Chamavam-se uns aos outros. O fogo, em pouco tempo, se alastrava, inclusive e principalmente sobre os domínios do rei. Eram os revoltosos, os insatisfeitos contra o poder (e as arbitrariedades?) do rei Christophe. Veio à sua mente a Cidadela. Mas essa fortaleza, única no mundo, era demasiadamente grande para um homem só. Quase não se ouviu o disparo. O rei morria, pelas suas próprias mãos e de bruços em seu próprio sangue. Fim. Fim? Não.

Apesar das controvérsias sobre o fato, O reino deste mundo, de Alejo Carpentier, é, mais do que o precursor do realismo maravilhoso, um romance pretensioso em sua proposta, em que ficção e realidade se misturam de forma imperceptível, e competente em sua execução, sobretudo por causa da sua linguagem colorida e da ironia em suas entrelinhas. A linguagem corrobora com a proposta do gênero. As ironias, muito mais perceptíveis na sucessão dos fatos, frustram (no bom sentido) o leitor e fazem do romance uma obra amoral, que não se preocupa em julgar brancos ou negros, mas sim explicitar a natureza humana quando se depara com o poder em mãos. Embora por razões distintas, tanto uns quanto os outros cometem atrocidades e escravizam o seu semelhante.

O reino deste mundo
Alejo Carpentier
Trad.: Marcelo Tapia
Martins Fontes
136 págs.
Alejo Carpentier
Romancista, contista, poeta e musicólogo, Alejo Carpentier nasceu em Havana, em 1904. Filho de um arquiteto francês, passou a infância na Europa. Em 1921, de volta a Havana, inicia seus estudos de arquitetura, os quais abandona para dedicar-se ao jornalismo e à música. Deixa Cuba secretamente e muda-se para Paris, onde permanece até 1939. Morre em Paris, em 1980. É autor de vários livros, entre eles, O século das luzes, A harpa e a sombra, Literatura e consciência política na América Latina e O recurso do método.
Sinvaldo Jr.

É pesquisador e professor. Formado em Letras, é especialista em Literatura.

Rascunho