Limites do experimentalismo

No caso de "Os contos de Belazarte", o domínio de Mário de Andrade sobre a linguagem produziu literatura desimportante
Mário de Andrade escritor
31/12/2016

Os contos de Belazarte, de Mário de Andrade, originam-se de crônicas escritas para a Revista América Brasileira. Publicado em 1934, o livro sofreu modificações e acréscimos na 2ª edição, de 1944.

As sete narrativas que compõem o volume estão muito distantes do que o leitor pode encontrar em Contos novos, obra póstuma, de 1947. E nenhuma se aproxima da qualidade do célebre O poço, sutil estudo sobre a cobiça.

O que descobrimos em Belazarte é o escritor preso ao experimentalismo da Semana de 22. É verdade que a obra de Mário não está repleta do cinismo que macula o legado de Oswald de Andrade, mas o autor de Macunaíma reconhece (ver o “Prefácio inédito”, na edição da Nova Fronteira, 2013) que as narrativas nasceram como “exercício de estilo” — estigma limitador, confirmado em carta a Murilo Miranda (dezembro de 1935):

(…) Tentei grafar exatamente, com o mais contraditório realismo, as inconsequências da fala popular (…). Mas grafei mais como objeto de estudo da fala popular, que como arte, que requer maior unidade e… parecença. Se você quiser mesmo publicar a coisa, faça um esforço danado pra sair sem nenhum erro tipográfico.

Nessas “coisas”, o narrador, Belazarte, de voz marcada por frases em sua maioria curtas, às vezes expressando erudição, tenta reconstruir prosódia, vocabulário e sintaxe coloquiais. De texto a texto, a receita invariável cansa o leitor. Some-se a tais características soluções dramáticas centradas em pessimismo e ceticismo que lembram a escola machadiana — e teremos a síntese do livro.

Pessimismo, aliás, do qual Mário jamais se libertaria. Suas palavras, no citado Prefácio, são incisivas:

Se não é possível em mim sequer uma esperança de mudar meu pessimismo neste país desgraçado em que cada mocidade é um monturo nojento de fraquezas, ignorâncias, complacências e ambições paupérrimas, é por vias mais humanas que terei de cantar a elegia do caráter moribundo e a imundície de tudo quanto somos.

Palavras que ecoam na carta a Álvaro Lins (4 de julho de 1942), em que reavalia Macunaíma:

Mas a verdade é que eu fracassei. Li o livro é todo ele uma sátira, um não conformismo revoltado sobre o que é, o que eu sinto e vejo que é o Brasileiro, o aspecto “gozado” prevalecem. É certo que eu fracassei. Porque não me satisfez botar a culpa nos brasileiros, a culpa tem de ser minha, porque quem escreveu o livro fui eu. Veja no livrinho, a introdução com que me saudaram! Pra esses moços, como pra os modernistas da minha geração o Macunaíma é “a projeção lírica do sentimento brasileiro, é a alma do Brasil virgem e desconhecida”, que virgem nada! que desconhecida nada! Virgem, meu Deus! será muito mais um cão de nazista! Eu fracassei.

Sentimentos que não diminuem Mário, capaz de um desnudamento integral, como neste trecho da carta:

Sou apenas como todos, um pequeno e incompleto e imenso ser humano. E si lhe confessei certos aspectos dolorosos da minha vida foi por esta sinceridade tantas vezes brutal com que gosto da vida, gosto da humanidade e dos indivíduos, lealmente sem a menor intenção de me fazer passar por um “caso”.

Mas voltemos a Belazarte.
A primeira narrativa, O besouro e a rosa, resume o experimentalismo do autor, capaz de mimetizar o discurso informal de um contador de causos, mas desequilibrando-se algumas vezes, ao introduzir expressões eruditas — “A venda movia toda a dinâmica alimentar da existência (…)” —, ou, pior, infantilizar-se recorrendo à artificialidade das onomatopeias — “Batia pra saberem e ia-se embora tlindliirim dlimdlrim, na carrocinha dele”.

Há boas figuras, cuja expressividade altera, momentaneamente, nosso julgamento — “alastrou um riso perdido na cara”; “vivia mordido de impaciências curtas”; “chorava gritadinho” —, mas insuficientes para salvar a descrição naturalista e inverossímil do despertar da libido na protagonista: o besouro de Rosa equivale à borboleta do sonho de Pombinha, no capítulo XI de O cortiço. Aliás, não satisfeito em repetir o exagero de Aluísio Azevedo, Mário acrescenta, na jovem de completo alheamento, que sequer conversava com as vizinhas, a preocupação infundada de permanecer solteira.

O problema se repete na história seguinte, Jaburu malandro: obedecendo à psicologia tortuosa, Carmela adquire “violência de malvadez”, consequência inevitável, segundo o biologismo de Belazarte, para todos que se apaixonam.

Caim, Caim e o resto não é apenas uma “coisa” inócua, na qual o narrador não oferece justificativas para o comportamento dos irmãos — mas reencontramos as onomatopeias que, segundo os fãs do livro, devemos considerar geniais: “Plão, tlão, tralharão, tão, plão, plãorrrrr… bonde passava” e, ainda mais risível, a antológica “O cachorro latia, uau, uau… uau…”.

O autor destila lascívia homossexual em Túmulo, túmulo, túmulo, único texto em que Belazarte fala de si mesmo. A descrição de Ellis, negro contratado para ser doméstico, surge carregada de elogios sensuais: “(…) Era doce, aveludado o preto de Ellis… A gente se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde (…)”; “(…) Com aquele olho-de-pomba me seguindo, arrulhando pelo meu corpo numa bulha penarosa de carinho batido, eu nem sabia o que fazer (…)”. Não por outro motivo o alter ego de Mário, se consegue ver beleza em Dora, a mulher pela qual Ellis se apaixona, também demonstra inveja e despeito: “(…) Dora era corpo só. (…) Eu não tinha corpo mas era protetor. E principalmente era o que sabia das coisas. Desta vez amor não se uniu com amizade: o amor foi pra Dora, a amizade pra mim. Natural que o Ellis procedesse dessa forma, sendo um frouxo”.

Sentimentos aos quais não faltam melosidade e chavões:

(…) A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas tudo o que existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudada nele. (…) Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si mesmo, coisa humana profundamente, que faz a gente viver duplicado, se repartindo num casal de espíritos amantes que vão, feito passarinhos de voo baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele…

O discurso preconceituoso surge aqui e ali: o narrador se declara superior a Ellis e sua família, ridicularizando-os por seus modos pouco refinados, por não saberem “pegar na xicra”, e salienta que “Benedito” é o “nome abençoado de todos os escravos sinceros”. Que nome horrível teria um escravo insincero? Os membros do Conselho Federal de Educação — que, há poucos anos, empreenderam vergonhosa campanha contra Monteiro Lobato — não devem ser leitores de Mário…

Piá não sofre? Sofre e Nízia Figueira, sua criada nada acrescentam. Na primeira, famosa por seu caráter melodramático, o narrador comete grave erro — ou pretende confundir o leitor: no início, para introduzir a personagem Teresinha, que aparecera em Caim, Caim e o resto, cita fatos que nem sequer foram ali sugeridos.

Há, no entanto, uma narrativa que merece atenção: Menina de olho no fundo. O narrador supera o pessimismo e consegue se livrar da psicologia superficial, ainda que não totalmente. O humor perpassa a história do professor Gomes e sua aluna, Dolores, manipuladora e infantil. Belazarte permite aos personagens diálogos ágeis e divertidos, em que o tom coloquial perde o artificialismo e expressa as características dos interlocutores. A personalidade da jovem revela-se na exata medida em que o confuso, desligado e tímido Gomes demora para perceber o que sente em relação à vizinha, Serafina. Os olhos verdes de Dolores ganham vida numa sucessão de figuras eloquentes: a garota lança sobre Gomes “um feixe de esmeraldas”; ao chorar, “apaga esmeraldas no lencinho”. No final, não temos desgraças mal construídas — Dolores sofre, mas, em sua leviandade, “três meses depois está curada”.

Belazarte evidencia o domínio de Mário sobre a linguagem, mas um domínio frio, que produziu, no caso destas histórias, literatura desimportante — exatamente da forma como o próprio autor confessa em carta a Manuel Bandeira (10 de agosto de 1934):

Eu tenho muita técnica, não se discute, e tenho principalmente o que se poderia chamar de inteligência técnica, ou talvez, técnica de inteligência. Quero dizer: aquela esperteza de inteligência que sabe aperfeiçoar uma obra de tal forma que ela pareça boa, você me entende? A coisa não é boa nada, mas pela escolha do detalhe, pela habilidade de gradação, pela roupagem exterior, pelo mistério habilmente disposto, parece profundo. Sem ser profundo propriamente.

Melhor julgamento que esse, só o de Guimarães Rosa, em carta a Mari L. Daniel (citada por Wilson Martins na História da inteligência brasileira), quando critica o projeto de Mário de “abrasileirar a todo custo a língua”, segundo “postulados (…) mutiladores, plebeizantes e empobrecedores”.

Obra limitada, Belazarte só pode fazer a alegria dos que, errados, ainda se apegam à Semana de 22 como tábua de salvação da literatura nacional.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Graciliano Ramos e São Bernardo.

Mário de Andrade
Nasceu em São Paulo, em 9 de outubro de 1893, e faleceu na mesma cidade, em 25 de fevereiro de 1945. Estudou no Ginásio N. S. do Carmo, cursando a seguir o Conservatório Dramático e Musical, de que foi mais tarde professor. Fundou o Departamento de Cultura da Prefeitura de S. Paulo, a Sociedade de Etnografia e Folclore e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Regeu a cadeira de Filosofia e História da Arte na Universidade do Distrito Federal. Dividiu sua atividade em diversos campos: poesia, ficção, crítica literária e de artes plásticas, musicologia e folclore. Foi o doutrinador por excelência do Modernismo — e também um dos seus críticos.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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