Lillian Hellman Retrato de uma americana

A autora tinha uma grande experiência com teatro, senso perfeito de ritmo, diálogos e climas a serem criados na imaginação do leitor
Lillian Hellman, autora de “As pequenas raposas”
01/03/2007

Em 2005, acho que tão solamente uma revista brasileira de cultura apareceu para assinalar os cem anos de nascimento de Lillian Hellman (1905-1984).

Foi em julho, e eu tive que lançar mão de argumentos relacionados mais com a biografia da “mulher de Dashiell Hammett” (é assim que muitos a conhecem) do que com a qualidade de alguns textos admiráveis produzidos pela dramaturga, roteirista e escritora nascida em New Orleans, a mulher que disse um “não” — sonoro e definitivo — ao Comitê de Atividades Antiamericanas, responsável pela inquisição política mais famosa do século 20.

A lembrança do Comitê e a sintonia com o filme Boa noite e boa sorte foram fundamentais para a aprovação da pauta relacionada com uma quase desconhecida do leitor brasileiro (só seus livros autobiográficos foram traduzidos aqui), embora o filme Julia, de grande sucesso, tenha divulgado o nome de Lillian Hellman como o da autora de Pentimento, livro no qual se baseou o diretor Fred Zinnemann para realizar uma das suas melhores obras.

O realizador de High Noon, na verdade, aproveitou só parte de um dos “retratos de memória” presentes na obra literária original, ou precisamente aquela que já se apresentava, no papel, como um filme à espera apenas de produtores, atores e mais toda a parafernália de técnicos e equipamentos que dão existência real a um argumento (do qual sai o roteiro que, ainda assim, “é apenas a hipótese de um filme”). Lillian tinha uma grande experiência com teatro, senso perfeito de ritmo, diálogos e climas a serem criados na imaginação do leitor, no palco e na tela para a qual Julia foi levado para contar uma história de perigo e amor entre mulheres. Para quem não viu o filme — ou não leu a narrativa enfeixada em Pentimento —, digamos que Lillian descreve, com a riqueza de detalhes da sua prosa, como teria arriscado a vida para levar, da América para a Berlim nazista, uma inocente (e improvável) caixa de chapéu contendo alta soma de dinheiro arrecadado por ela, para a personagem-título Júlia, interpretada pela ótima Vanessa Redgrave. Júlia teria sido uma “amiga da adolescência” (e também uma ex-aluna de Freud), então envolvida com a quase resistência anti-Hitler dentro da Alemanha que Leni Riefenstahl já estava filmando com as pompas dos que triunfam pela vontade e pelo calar da consciência.

Jane Fonda, com seus olhos luminosos, deu vida ao papel de Lillian. O filme foi sucesso de público e de crítica, e a imprensa americana naturalmente se interessou pela antiga militante antifascista, pondo-se no encalço para saber se a verdadeira “Júlia” ainda estaria viva.

Estava. Ela se chamava Muriel Gardiner Buttinger, era uma simpática senhora já meio esquecida daqueles perigos dos anos 30, porém se lembrava, perfeitamente, do seu codinome — Mary e não Julia —, da luta política perigosíssima na sombria capital do Terceiro Reich e… não, nenhuma Lillian Florence Hellman na sua vida.

Ou seja, nunca fora amiga ou colega da autora daquele “retrato” filmado por Zinnemann com a inspiração, de sempre, do cineasta de origem austríaca.

Muriel não fora capturada e torturada, até a morte, pelos nazistas (como acontece no texto e no filme), e sua história era conhecida de poucos, dentre os quais se incluía um advogado de Nova York — Wolf Schwabacher —, amigo de Lillian e de outras personalidades do teatro. Bem, Lillian Hellman usou a história real de “Mary” — que o advogado gostava de contar aos seus clientes, sempre que tinha oportunidade —, com todos os lances nos quais com certeza ela enxergou uma “boa história” para se assumir na primeira pessoa, sentindo-se na pele da “amiga” postiça para ficar, talvez, mais à vontade na narrativa fabulada a partir dos dados verídicos.

Um pequeno deslize da imaginação, sem dúvida, porém nada tão grave que mereça o anátema furioso de Ruy Castro, em Saudades do século 20, quando o bem-humorado Ruy usa o pior do mau humor para mencionar o caso como “uma das maiores fraudes do século” (aparentemente esquecido dos falsos “diários” de Hitler e outras imposturas cometidas apenas para fazer dinheiro e não para obter, com certa licença poética, um resultado artístico mais satisfatório do que a simples verdade).

Foi o que T. E. Lawrence fez, do mesmo modo, com o “episódio de Deraa”, em Os sete pilares da sabedoria, com um pouco do temperamento mitômano de todo escritor que valoriza a atenção do leitor arrastado pela autenticação do “eu” presente na arriscada viagem imaginária da autora de Pentimento, americana tímida que se imagina correndo em socorro de uma colega perseguida pela Gestapo.

No trem gelado
O título do livro de Hellman, aliás, dá uma boa pista disso: “pentimento” é o processo de pintar, camada após camada, sobre pinturas antigas, e esse foi o processo da autora de The Little Foxes, na criação de Julia: imaginou que estava dentro de um trem gelado, a caminho da Alemanha hitlerista, para levar a absurda “caixa de chapéu”, forrada com 50 mil dólares, para a amiga de escola pela qual ainda se sentia atraída.

Fábula por fábula, é por isso que estamos aqui, agora, a falar de um filme admirável e de uma mentira que, bem ou mal, reforçou o material de um ótimo livro (além de que, sem Pentimento, Muriel Gardiner Buttinger talvez fosse ser lembrada apenas como uma “socialite” com algum vago passado de estudos em Viena, até retornar — correndo — para a América, em 1939).

Lillian Hellmann foi também a autora de peças teatrais de muito sucesso: The children’s hour, com sua ousada sugestão de lesbianismo (nos anos 30), é ainda atração, vez ou outra, nos palcos americanos, além de ter tido duas versões cinematográficas, ambas assinadas por William Wyler, mestre do cinema que foi amigo da escritora nascida em 1906, filha de Julia Newhouse e Max Hellman. Para o teatro, ela escreveu também as aclamadas Watch on the rhine, The autumm garden e Toys in the attic.

Seu único fracasso no palco –– My mother, My father and Me — levou-a a abandonar o teatro, em 1963, para se dedicar aos relatos e aos roteiros de filmes como Caçada humana, de Arthur Penn. Em muito do seu trabalho, sente-se o dedo do escritor Dashiell Hammett — com quem Lillian viveu por mais de trinta anos —, tanto nos diálogos quanto em algumas situações dramatúrgicas bem desenvolvidas, com a intriga desdobrada como num bom romance policial. E fica nisso. Hammett de modo algum “escrevia as coisas de Lillian”, como os fanáticos de “Dash” gostam de acreditar.

Quando o velho Hammett teve de comparecer perante o comitê da “Caça às Bruxas” (título de um dos polêmicos livros de Hellman), a escritora mais jovem virou uma leoa ferida e, ao chegar a sua vez, teve a atitude inédita entre todos os convocados: recusou-se a falar “a não ser de si mesma”. Disse isso por escrito, ao mais que temível Comitê, avisando que não mencionaria nome algum, de amigo ou de inimigo — o que abriu caminho para a “ousadia” de outros. A mesma coragem que Lillian Florence já revelara ao se engajar, anos antes, na luta pela Causa Republicana, durante o desastre da Guerra Civil espanhola (cujo front ela visitou, naquelas levas de intelectuais atraídos, em 1936, para Madrid, Barcelona e outras cidades da península, a fim de “fazerem alguma coisa”, fosse no volante de uma velha ambulância ou nas montanhas idealizadas pelos romances hollywoodianos de Hemingway).

Un unfinished woman é o seu relato autobiográfico mais conhecido, talvez por tratar da relação com Dashiell e da amizade com Dorothy Parker e outras celebridades que a autora madura retrata com paleta de aquarelista, trabalhando sobre alguns estudos de artista delicada. Uma mulher inacabada foi o livro distinguido, em 1970, com o National Book Award, e dele saímos com a sensação de haver percorrido a Sibéria remota (Lillian viajou por lá — realmente — a convite de Stalin) ou que trabalhamos com Wyler, num agradável terraço de hotel com vista para as ruínas do Fórum iluminado pelos tons dourados do entardecer romano.

No final da vida, Miss Hellman se interessava pela memória, menos para confiar do que para duvidar do que guardamos nessa caixa de surpresas. “O que retemos? O que perdemos, enquanto preservamos só uma parte das coisas? Aquilo de fato aconteceu naquela Villa toscana, debaixo do guarda-sol agora enferrujado num canto de jardim? Quem era o hóspede que acabou de sair? E que cidade é esta?”…

Essas são algumas das perguntas de fundo — esperadas e inesperadas — de Maybe, o pequeno livro de sessenta e poucas páginas que foi o último publicado por Lillian Hellman, em 1980. Nele, a busca do tempo perdido talvez se transforme na procura do tempo duvidoso que subsiste, de variadas formas, às vezes na mesma memória desconcertada.

Quatro anos depois, viria a falecer, ainda polêmica e ativa aos 79 anos, na casa de praia onde morava — com absoluta necessidade “de ver e ouvir o mar” — no elegante balneário de Martha’s Vineyard, Massachusetts.

BOX
Frases de Lillian Hellman:

O cinismo é apenas uma maneira desagradável de dizer a verdade.

Escritores são pessoas interessantes, mas, com freqüência, más e mesquinhas.

As pessoas mudam e, geralmente, se esquecem de comunicar a mudança aos outros.

Eu não posso (e nem quero) limitar a minha consciência para me adequar ao figurino de novas modas deste ano.

Devemos perdoar os nossos inimigos, sim, mas não antes que sejam enforcados.

Muita gente fantasia vitórias ou prazeres do passado para suportar o presente.

Pode-se sobreviver, se se deseja isso verdadeiramente — o que é algo que só se descobre depois dos marcos da sobrevivência.

Ainda não estou suficientemente idosa para gostar mais do passado do que do presente.

“Dash” Hammett foi o homem mais interessante que conheci — não só porque me ensinou a escrever, mas porque nunca mentiu, nunca enganou, nunca se humilhou. Sinto falta dele! Bem mais do que sabia que iria sentir, depois de acostumada mais com os silêncios (tão sonoros!) do que mesmo com as suas opiniões, raras e valiosas.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho