A um literato basta um único comportamento para construir toda uma pessoa com as artes necessárias para assumir tal comportamento, bem como outros meios que lhe sejam úteis. Ele a constrói, mas não acredita nela, e a ama especialmente se puder vê-la como uma imaginação que sabe, porém, se mover sobre a terra real e ser iluminada pelo sol de todos os dias. E se essa construção já existe, ele nem mesmo a percebe, porque isso não tem nenhuma importância para seu pensamento.
Ele era agora nada mais do que o homem de sucesso. Uma pessoa em quem a ambição se deformava numa vaidade ridícula, e que acreditava que as leis comuns da justiça e da humanidade não valessem para ele.
A alma estética de Westermann, seu olho que jamais fechava, pois de outra forma poderia acontecer ao editor de comprar como verdadeiras certas pedras falsas, como Mario, que não entendia nada disso, supunha que pudesse ocorrer com joalheiros. E era frio, muito frio: como uma máquina que só conhece um único movimento. Em sua mão a obra adquiria todo o seu valor e não mais, e se tornava inerte como uma mercadoria que passa pelas mãos de um intermediário, não deixando nada mais que um benefício em dinheiro. Não seduzia, mas era apreendida, pesada e medida, entregue a outros e esquecida, para que não entravasse a obra da máquina imediatamente recolocada em movimento. Depois de ter lido o romance de Samigli, o crítico foi até o escritório de Wertemann e disse: “Eis a obra adequada a vocês. Eu os aconselho a telegrafar rapidamente ao seu representante de Trieste, para que a adquira por qualquer preço”. Assim sua tarefa havia se encerrado. O que teria lhe custado enviar a Samigli um cartão-postal para lhe dizer a palavra inteligente que comente ele era capaz de formular? Assim, precisamente assim, era feito o melhor crítico do mundo. E pensar que vale a apena escrever só porque neste mundo existia um monstro semelhante.
Vocês literatos têm um modo demasiadamente especial de se exprimir. Não serve para os homens comuns que fazem negócios.
Brauer foi várias vezes ao banco e, como não encontrou ali notícia esperada, quis induzir Mario a telegrafar para saber, o quanto antes, do destino do cheque. Mas Mario não seguiu o conselho do homem de negócios porque pensava que a prática, no mundo das letras, o impedia de fazer isso. Sabia por dura experiência como era perigoso em literatura perturbar os editores com solicitações […]. Como mercadoria, um romance é sempre diferente das outras mercadorias. Mario pensava que, se perdesse aquele comprador, deveria esperar mais quarenta anos para encontrar outro interessado.
Tratava-se de uma literatura caseira, nascida no quintal e destinada àquele quarto. Aliás, não era literatura porque literatura é uma coisa que se vende e se compra.
Um dia Mario sentiu o coração apertado, vendo que o sucesso havia aniquilado nele o amor pela fábula. Fazia dias que não escrevia nem mesmo sonhava com nada. O sucesso havia ligado seu pensamento ao antigo romance, que ele estudava para refazê-lo, enfeitá-lo, inchando-o com novas cores e com novas palavras. O sucesso era uma gaiola de ouro […]. Mais tarde, quando a gozação foi descoberta, ele iniciou seu retorno à vida antiga com a fábula na qual narrava a vida de um pássaro melodioso na gaiola, que se gabava de cantar a natureza e não sabia falar senão do pode de água e daquele de grãos entre os quais vivia. E foi seu grande conforto encontrar-se preparado para rechaçar, como certamente deveria fazê-lo, a ridícula concepção de merecimento de aplausos e de admiração, aceitando o destino que lhe era imposto, como humano e não desprezível.
Não é de hoje, e repito isso por aí, que ando com um bode enorme de livros ficcionais que contam a história de escritores (ou jornalistas, editores, professores universitários…). São quase sempre enfadonhos, feitos para seus pares, feitos para escritores que leem seus amigos escritores e se reconhecem nos personagens escritores. Pois Uma gozação bem-sucedida é uma agradável exceção nesse universo. Não por ter sido escrito em 1926 e publicado somente em 1929, um ano após a morte de Italo Svevo, o que já ambienta a história em uma realidade bem distinta da nossa, mas por tratar do escritor de maneira jocosa, alvo da gozação anunciada no título — ali, o homem da pena não é alguém sério demais, quase sagrado.
O título ganhou por aqui uma recente edição bilíngue (português e italiano) pela Carambaia. O charmoso volume tem tradução de Davi Pessoa, professor de literatura italiana na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que também assina o posfácio. É nesse texto de apoio que ele faz uma pertinente análise da obra. Nela, aponta, Svevo “volta-se contra ele próprio, ou melhor, contra Mario Samigli, protagonista do curto romance, que é mais um pseudônimo cunhado por Svevo [bedelho meu: no próprio texto, Pessoa já tinha lembrado que Italo Svevo é um pseudônimo criado por Ettore Schmitz], com o qual assinou muitos artigos no L’Indipendente. Svevo, certa vez, declarou que não há salvação longe da caneta, e que durante todos os dias o escritor deve tentar trazer à tona do âmago do próprio ser um som, um acento, um resíduo fóssil ou vegetal de algo que seja ou não puro pensamento, puro sentimento, mas excentricidade, choro, dor, isto é, algo de sincero anatomizado”.
Previsível farsa
Como dito, em Uma gozação bem-sucedida somos apresentados a Mario Samigli, homem de 60 anos que vive em Trieste, sofre de gota, toca a vida com um emprego burocrático e sonha em ser reconhecido pelo talento literário que acredita ter. Na verdade, em quarenta anos ele escreveu apenas um romance e algumas fábulas, mas, tal qual muitos artistas que vejo por aí, tem certeza de que esses escritos são algumas das intervenções mais belas já cunhadas neste mundo. Certo dia, é apresentado a um editor de Viena, que se mostra interessado em publicar seu trabalho, pagando-lhe uma boa grana. Sim, a gozação se constrói nessa previsível farsa.
O próprio Svevo classificou Uma gozação bem-sucedida certa vez como um “curto romance de uma brincadeira”. Fora o agradável tom jocoso e as muitas cutucadas à escrita, à literatura e à indústria literária — ainda pertinentes, por isso que reproduzi diversas delas acima —, o pano de fundo da história também é valioso. Ela se passa em 1918, quando Trieste deixou de ser uma cidade austríaca para ser anexada pela Itália. “Três de novembro de 1918, dia histórico para Trieste, teria sido realmente pouco adequado à gozação”, questiona o narrador em certo momento. Nesse dia, o Armistício de Pádua foi assinado, encerrando os conflitos entre a Itália e a Áustria-Hungria durante a Primeira Guerra Mundial
“Jamais havia existido neste mundo uma multidão semelhante àquela que se movia entre Trieste e Viena naquele período, agarrada aos poucos trens ferroviários, ou em forma de ininterrupta enchente, a pé, nas estradas principais, composta pelo exército em fuga e por burgueses emigrantes e repatriados, todos anônimos, desconhecidos como fileiras de animais mortos pelo incêndio ou pela fome”, escreve Svevo na obra, me fazendo imediatamente lembrar das multidões que ainda se movem pelo mundo em 2017.
Mas voltando à literatura e aos escritores — e já para encerrar a resenha, que está maior do que deveria —, deixo aqui uma preciosa anotação de um diário de Svevo resgatada por Pessoa em seu posfácio: “A verdadeira batalha consistiria no esforço de levar ao livro aqueles fortes e inocentes que ainda não sabem ler. Estes ainda não desprezam o livro que lhes foi proibido pelo destino”.