Lições de enterrar o pai, a biblioteca e a poesia

Com "Cinco Marias", Carpinejar reafirma obsessões poéticas e refina a escrita
Carpinejar: criatividade ao se apropriar de forma incisiva de sua biografia Foto: Renata Stoduto
01/05/2004

Num dos poemas do novo livro de Fabrício Carpinejar, o leitor é informado que “A mesa oferecia seis lugares,/ nenhum encosto a mais”, de forma sutil, quando se sabe que o livro tem cinco personagens, deixando reverberar longamente o vazio resplandecente de um desses lugares. Isso se explica no fato de que esse vazio é o tema de todo o livro, ocultado como um cadáver, literalmente, pela onipresença de cinco mulheres, as Cinco Marias que dão título ao livro. Essas mulheres — a mãe e quatro filhas — enterram o pai e sua biblioteca no jardim e procuram manter a aparência de normalidade, levando uma vida reclusa até serem descobertas e expostas pelo que fizeram e pelo diário coletivo que escreveram confundindo suas vozes e sentimentos.

Matar o pai ou enterrá-lo no jardim para tê-lo por perto, no pampa, dessa forma, é uma das obsessões da poética de Carpinejar, que em Cinco Marias reaparece como uma metáfora estendida que ecoa de outros livros ou especialmente de um dedicado inteiramente ao assunto, Um terno de pássaros ao sul, no qual ele explora a sua relação fraturada com a figura paterna, da qual se separou na infância. Enterrar o pai no jardim, assim, pela reiteratividade, é uma ação simbólica que já pode ser lida em tom de brincadeira e como uma marca recorrente na obra desse poeta, apesar da tragicidade agônica que sugere por ser um traço biográfico. Mas é disso que vem a sua força, de não ter pudor com sua história, de esmigalhá-la como forma de se reconhecer e nisso se perder em estranhamento, que é o preço da verdadeira literatura. Sábio, portanto, é um dos versos desse livro quando sugere que “Nada é definitivo. Nem a memória”, da mesma forma em que outro diz que “Os antepassados nunca estão concluídos”. Em Cinco Marias, o pai morto e enterrado no jardim é uma personagem nauseante para as mulheres, que provoca a desunião enquanto vive, só passando a ter efeito contrário quando morre. O asco a esse pai é explicitado de tal forma que seu beijo na testa das filhas recende um hálito capaz de estragar o mais fino vinho: “Não importava a safra,/ poderia ser a melhor,/ ela azedava em sua veia”.

Carpinejar tem se destacado, portanto, pela criatividade com que se apropria de forma incisiva de sua memória e biografia pessoal para transformá-las em literatura distintiva. Recuperar a memória e dar a ela um tratamento literário é uma forma de lutar contra o empobrecimento das experiências ou até mesmo o seu desaparecimento nas sociedades altamente urbanizadas contemporaneamente. Nesse contexto, elas são diluídas, asseptizadas ou glamourizadas até perderem o sentido, daí a importância de se recuperá-las ou explorar seus sentidos, como forma de se ir contra esse estado de coisas e revalorizar o humanismo e a tragicidade da vida em sua essência.

Com essa escrita, que se consubstancia em experiência ela mesma, Carpinejar compôs um significativo conjunto de livros que se destaca também por outros aspectos, como a forma de manipular a temática conjugando poesia e prosa, elementos próprios da ficção ou a incorporação de efeitos imaginativos que se associam aos personagens, como o jogo das cinco Marias, que remete às personagens e às suas falas poéticas embaralhadas e servindo como um atrativo curioso para apresentar o livro ao leitor.

Sobre esse aspecto, na edição anterior do Rascunho, observei a atual tendência dos poetas de buscar renovação da expressão poética através do que se denomina “poema em prosa”, forma de texto notabilizada por Baudelaire que tem sido muito usada nos últimos anos, apontando uma tentativa da poesia contemporânea de superar modelos desgastados.

Ainda que não parta exatamente desse mesmo pressuposto baudelaireano, Fabrício Carpinejar tem feito sucessivas experimentações com a escrita poética, manipulando a idéia de prosa e poesia e, com isso, tem obtido sucesso junto à crítica e, sobretudo, o que é raro quando se fala de poesia, sucesso de público leitor. Cinco Marias, por exemplo, além de ser uma espécie de continuação independente do livro anterior, Biografia de uma árvore, ao apresentar a história de um personagem que aparece naquele livro, foi escrito como um diário de uma mãe e cinco filhas vivendo isoladas em uma casa depois de terem enterrado o pai e sua biblioteca no quintal. Esse diário, por sua vez, foi elaborado a partir de uma notícia de jornal que registra fato relacionado às cinco Marias, forjada pelo poeta e datada de 31 de outubro de 2045, data que ele tem usado como marca em seus livros, remetendo o passado para o futuro, sendo essa outra dessas curiosidades recorrentes em seus livros. Cabe notar também que, ainda que o procedimento seja parecido, o uso de uma notícia por Carpinejar é bem diferente daquele feito tipicamente pelos modernistas que escreviam um poema ou uma crônica inspirados numa notícia do jornal. Contemporaneamente até a notícia é forjada, sendo um instrumento da poética e não propriamente sua fonte.

Em Biografia de uma árvore, que em tudo parece um conto em linguagem vagamente poética, a pontuação e as frases são marcadas e chegam a soar persistentes, caracterizando o tom narrativo e a escrita que se faz no fio da navalha entre prosa e poesia. O uso de recursos próprios da ficção por esse poeta tem sido eficiente a ponto de ter se transformado em marketing em busca de leitores, como o faz a editora na promoção de Cinco Marias, que diz em seu material promocional que “a obra pode ser lida tanto como poesia como romance”, sugerindo ser um “Poema com enredo, trama e suspense”.

O fato é que o trabalho de Carpinejar proporciona um interessante fôlego para reflexão ao demonstrar que é possível manipular a linguagem poética atribuindo a ela novos usos, de forma a se sair do olhar viciado que entifica o poema e o totemiza a ponto de quase grafá-lo em maiúscula e, portanto, idealizá-lo platonicamente tornando os poetas servos de um modelo.

Além disso, é preciso que se diga que a linguagem poética é econômica (coordenada pela respiração, disse Carpinejar: “Desde a infância, ela floresce minha asma”) e neste Cinco Marias ganhou ainda mais com a depuração obtida com a diminuição da excessiva pontuação dos livros anteriores, fato que evidencia a linguagem poética e afasta o tom exagerado de conto que se observa, por exemplo, no livro Biografia de uma árvore. Finalmente, em Cinco Marias, apesar de um ou outro lugar-comum (“O homem escreve como quem grita./ A mulher escreve baixo, em prece.”), Carpinejar nos dá o deleite de versos como os de uma das mulheres que nos diz que “Diante do prado,/ ardo imensa”. Ou o espanto da primeira fala de uma doente que sai do coma e diz: “Seja impura, a pureza é violenta”.

Cinco Marias
Carpinejar
Bertrand Brasil
123 págs.
Ademir Demarchi
Rascunho