Transversais do tempo, de Tailor Diniz, começa muito bem. Cíntia Moscovich, uma das mais expressivas autoras contemporâneas brasileiras, na apresentação do livro, ressalta três dos sete contos: Rolex de ouro chama a atenção de bandido, Letra de tango e Pelo avesso — sugestões de leitura que parecem produtivas para o entendimento deste trabalho do autor.
A coletânea, no geral, é bastante bem escrita, o que demonstra a intimidade de Diniz com a construção da frase e a elaboração do discurso. Há no texto da quarta capa alusão a alguns expoentes do gênero dito policial no Brasil, como Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Marçal Aquino. Não classificaria Transversais do tempo como livro policial, assim como não se pode considerar, exatamente, a obra de Fonseca ou de Aquino sob tal rótulo simplificador.
Em Rolex de ouro chama a atenção de bandido, um inescrupuloso assessor de imprensa livra-se da acusação de um crime de maneira irônica. O texto, na verdade, lembra mais uma crônica divertida e bem costurada, com a acidez de comentários sarcásticos bem colocados. Como no restante do volume, o autor trabalha a crueldade humana e o inusitado das situações extremas com a leveza de um relato direto, como se a temática fosse algo banal, e não o universo violento e traiçoeiro que corrói por dentro a sociedade contemporânea.
Este aspecto surge com a máxima relevância em Letra de tango, diálogo entre um delegado e um criminoso, investigação da frieza e da ausência de valores que permeiam as atitudes inexplicavelmente violentas, algo que lembra momentos iluminados da prosa recente, como o texto O monstro, do livro homônimo de Sérgio Sant’Anna (um dos mais brilhantes do autor carioca).
Pelo avesso é engenhoso relato escrito com a inversão da linha do tempo, uma história que começa no desfecho e vai voltando, voltando até os momentos que antecedem a tragédia, em que tudo aparentemente está bem. Mistura de um vídeo passado de trás para frente, nas mãos de quem aciona o controle remoto para retroceder a narrativa e uma reconstituição policial, no melhor estilo das atuais e vibrantes séries investigativas da TV, o conto é primoroso e, em alguns aspectos, o mais notável do volume.
Em termos de conjunto, o livro perde um pouco na regularidade dos textos. Rastros na sarjeta e O inominado não têm a mesma força dos acima mencionados. Entre espelhos e sombras, relato mais longo que encerra Transversais do tempo, é um tanto confuso. A personagem Delphine, que encanta e perturba o narrador, intercala à narrativa textos que escreve esparsamente em cadernos. E o conto é longamente interrompido pelos supostos textos da moça. Neste mar de histórias, um dos relatos de Delphine, sobre dois homens que vivem algemados, como irmãos siameses, um agricultor e um mágico, atados por uma história inusitada e bastante criativa, vale por todo o conto. Penso até que o argumento ali desenvolvido daria um extraordinário conto independente, ou mesmo um romance. A relação destes dois personagens é mais intensa e instigante que a própria relação do narrador com Delphine.
Nada mais sugestivo para concluir este breve olhar sobre Transversais do tempo que o conto A saideira, que abre o volume. Como estrutura narrativa, construção de trama e de personagens, é o mais bem resolvido do livro. O sussurrar da personagem no momento derradeiro do texto é surpreendente e dá ao relato uma dimensão que o ressalta do restante do conjunto.
Dentro do panorama contemporâneo da prosa brasileira, afora os rótulos de gênero, Tailor Diniz apresenta um texto enxuto e consistente, mais um autor de personalidade vindo das terras do extremo Sul, solo abençoado que nos dá a esperança de continuar existindo, mesmo que o resto do Brasil se afunde no galopante analfabetismo funcional, autores que nos representam e nos alegrem com uma prosa digna de uma nação que um dia contou com Erico Verissimo, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa como seus nomes mais destacados.