Leveza e derrapadas

Apesar de alguns equívocos, “A cortina” é interessante para se conhecer aspectos e influências na obra de Milan Kundera
Milan Kundera: incompreensão sobre a verossimilhança literária.
01/02/2007

Quem vê no excepcional romance A insustentável leveza do ser um grande livro, por certo se encantará com as leituras e comentários de Milan Kundera. Contudo, o ensaísta Kundera, neste livro, fica aquém do exuberante ficcionista. Outros autores-críticos, como Borges, ofertam ao leitor insights muito mais inquietantes. De qualquer forma, A cortina traz observações curiosas sobre autores como, entre outros, Flaubert, Tolstói, Gombrowicz, Rabelais, Cervantes, Musil e a relação entre eles. Não é propriamente a paidéia de Kundera, mas são aqueles autores que, no seu modo de ver, transformaram a literatura e/ou permitem que o autor tcheco formule algumas de suas inquietações estéticas e culturais.

Não é a única vez que Milan Kundera, tcheco nascido em 1929 e que desde 1975 vive na França, freqüenta as páginas do ensaio. Integram a sua bibliografia as reflexões de A arte do romance e Os testamentos traídos. Neste A cortina, o autor inicia vacilante e, logo de cara, nos apresenta uma contradição e um equívoco. Este último refere-se ao não entendimento (mas é possível que um autor como Kundera cometa um equívoco?) do fenômeno da verossimilhança. Quem leu Aristóteles, Barthes, Tacca, Booth, Warren e Wellek, os críticos italianos da Renascença ou do neoclassicismo francês do século 18, Compagnon, Luiz Costa Lima, Vítor Manuel, Bakhtin, Todorov (a lista seria grande demais), entende o fenômeno da verossimilhança como algo intrínseco à obra. (Abra-se um parêntese: apesar de citar tanto críticos, uma das melhores e concisas definições de verossimilhança o leitor encontrará no verbete do dicionário Aurélio). Ao etiquetar Kafka com o epíteto de inverossímil, mesmo elogiando-o, é porque não entendeu, desde Aristóteles, que já comentava o maravilhoso em Homero, que a verossimilhança faz parte da obra literária, mesmo que trabalhe com o absurdo, o surreal, o fantástico, o realismo mágico e aparentados.

A contradição cabe à defesa que Kundera faz de uma literatura universal. Já que o romance é uma arte que não distingue fronteiras a não ser as suas próprias, o autor tcheco advoga um romance que tem sua própria história independentemente de país.

É Cervantes que invoca Fielding sem parar; é Fielding que se compara a Stendhal; é a tradição de Flaubert que se prolonga na obra de Joyce; é na reflexão sobre Joyce que Broch desenvolve sua própria poética do romance; é Kafka que faz García Márquez comprender que é possível sair da tradição e “escrever de outra maneira”.

Kundera incorpora a idéia e o termo cunhado por Goethe de die Weltliteratur (a literatura universal). Ao mesmo tempo, Kundera condena aqueles que colocam a república tcheca no saco comum do Leste Europeu. Kundera não quer ser eslavo, luta pela especificidade da literatura de seu país, critica aqueles que não querem vê-lo como ocidental e afirma a inclusão da literatura do seu país na história da cultura do Ocidente.

Mas A cortina tem seu encanto. Primeiro, porque o leitor pode ter contato com a visão do autor predileto sobre a literatura e outros assuntos, o que lhe permitiria entender alguns procedimentos de sua obra. Ou, mostrar a coxia onde é forjada a história de muitos romances: leituras, influências e conceitos da literatura que o autor carrega consigo ao escrever. Ainda que os autores nos seus romances, pela forma que se apresentam, deixem escapar ao leitor suas afinidades e suas leituras. Kundera, mesmo que tão tenha o rigor de ficcionistas-críticos como Forster (com seu clássico Aspectos do romance), Mario Vargas Llosa (A orgia perpétua, sobre Madame Bovary, bate muitos estudos acadêmicos) ou Nabokov (que tem uma bela e rigorosa exegese sobre Dom Quixote), alcança momentos preciosos, seja comparando o fluxo de consciência em Joyce e antevendo-o em Anna Kariênina, de Tostói, seja aproximando as várias vozes do romance moderno com a utilização de cartas e a “modernidade” dessa pluralidade nos romances epistolares como As ligações perigosas, de Chordelos de Laclos.

Outro momento especial e que merece destaque são suas observações sobre a burocracia e a mecanização do mundo moderno. Talvez a sua mais aguda observação diga respeito ao entendimento dos fenômenos e das mudanças quando estas estão no início e não quando atingem seu pico.

Deduzo disso uma regra geral: o alcance existencial de um fenômeno social não é perceptível com maior acuidade no momento de sua expansão, mas sim quando ele se encontra em seus primórdios, incomparavelmente mais fraco do que se tornará depois.

Deste ponto de vista, a literatura passa a vigorar de maneira luminosa e permite que se leia autores como Kundera com um olho na literatura e outro nos avatares da humanidade.

A cortina
Milan Kundera
Trad.: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca
Companhia das Letras
156 págs.
Milan Kundera
Nasceu em Brno, na República Tcheca, em 1929, e emigrou para a França em 1975. É autor, entre outros, de A insustentável leveza do ser, A identidade, A brincadeira, Risíveis amores e A ignorância.
Ronaldo Costa Fernandes
Rascunho