Qual o propósito da crítica sobre uma obra criada há mais de 30 anos? Seu autor já está morto, e, mais do que isso, certamente o mundo em que ele viveu também está morto. Um mundo de sutilezas e detalhes que foram perdidos ao longo do século 20. Um cenário em que a intimidade ainda não era tão explícita, regido por uma moral rígida que mais delimitava uma linha de pensamento do que simplesmente sinônimo de bons costumes e tradições.
Não se sabe quem foi antes, o autor ou seu mundo. Mas o caso é que ambos já deixaram esse plano de existência e a tarefa de analisar uma obra de um dos mais renomados romancistas do século passado é quase ingrata a um resenhista da era “pós-contemporânea”. Mas é só quase, porque o simples prazer de se desfrutar uma história contada com a riqueza como faz William Somerset Maugham é mais intenso do que as possíveis agruras da crítica posterior.
É um alento, aliás, encontrar títulos relançados como este O destino de um homem. Livros dessa riqueza e importância deveriam estar sempre sendo restaurados com novas edições e prefácios. É a chance de se dar uma sobrevida à obra. Opção muito melhor do que as inesgotáveis séries encomendadas aos medalhões da literatura — normalmente pobres em enredo e estilo.
Não que os escritores de épocas passadas não escrevessem sob encomenda. Muito pelo contrário. Mas, especificamente, O destino… é um livro escrito sob a luz (ou a treva) da inspiração. Maugham (que apesar de ser um escritor inglês é nascido na França) primeiro criou seus personagens e depois os foi maturando até conseguir o formato ideal para deixá-los viver. Preferiu escapar de uma publicação folhetinesca em revista que por pouco não fez da obra um conto — “não dos maiores”, diria Maugham.
A explicação para isso está no prefácio do autor. Ele conta que a história surgiu a partir da personagem central do livro, a garçonete Rosie. De tão fantástica, o romancista não queria “desperdiça-la” com uma história menor. Esperou até que houvesse a melhor possibilidade de publicação. E devido à sábia paciência do autor, seus personagens encontraram seu melhor caminho, presenteando seus leitores com uma das mais magníficas obras do século 20.
Mas nem que se cobrissem as páginas deste Rascunho com palavras elogiosas se estaria dando o devido valor a O destino… Seria, aliás, uma forma muito fraca de se dizer que o livro é bom. Portanto, mais fácil abandonar a possibilidade inglória de se criticar o grande romancista e tomar a tarefa de comentar um grande livro.
O título em português do livro dá uma impressão errada sobre o que se verá no romance. Ao contrário do que parece, O destino de um homem não é uma obra pontual sobre o futuro da humanidade. Seu caráter não é existencialista; atém-se ao maior legado da literatura européia do início do século: a habilidade de contar histórias. Já o original Cakes and Ale: Or The Skeleton in the Cupboard (Bolos e Cerveja: Ou O Esqueleto na Xícara) representa com exatidão a história narrada a seguir.
Em inglês as expressões “skeleton in the cupboard” ou “skeleton in the closet” (esqueleto no armário) significam algo como “segredo guardado”. E é de segredos guardados — posteriormente revelados — que o livro trata. A história é narrada por William Ashenden, personagem muitas vezes associado a um alter-ego de Maugham; assim como vários outros personagens foram associados a outras figuras de carne e osso.
Seguindo o exemplo de vários de seus contemporâneos, Maugham trata no livro de metaliteratura. Especialmente a literatura inglesa do entre-guerras. O cotidiano dos escritores é detalhadamente descrito pelo escritor. Seu refinamento, suas vicissitudes, suas manias, enfim. Apresenta a história de Alroy Kear, um escritor mais atencioso e esforçado do que necessariamente virtuoso, que está se empenhando na biografia de um colega de ambos, o romancista Edward Driffield.
Driffield é descrito sempre de maneira irônica. Tratado como um lorde, escondia-se para tirar a dentadura e ficar longe de todos, como um velho rabugento. Sua vasta obra é desqualificada por Ashenden logo de início. Já o biógrafo Kear é complacente. No calor dos acontecimentos, pensa que Driffield, o “velho”, tornar-se-á um bastião da literatura.
Mas o romance é centrado na personagem preferida de Maugham, a garçonete Rosie, primeira mulher de Driffield. Renegada pelo “célebre” autor, Rosie é a mancha negra no currículo de Driffield. Menos que isso, é a história mal contada de sua vida. É, portanto, o “esqueleto na xícara” de Driffield.
Maugham empresta à mulher as melhores de suas recordações. Descreve-a como uma primeira namorada, como um primeiro amor que lhe reservou apenas uma noite para aceitar seus beijos “com uma passividade intensa e calma”. Daí a confusão entre personagem e autor. Os beijos foram dados por Ashenden, que vive apenas nas páginas do livro.
O crescente interesse de Kear pela história vivida por seu colega e a renegada Rosie vai revelando, aos poucos, os graus de envolvimento entre os personagens. Quem foi Rosie e de que forma ela influiu (ou influi) de maneira tão drástica no mundo daqueles autores que freqüentam campos de críquete? Maugham, então, desfila sua maior qualidade: os detalhes dos nós da rede de personagens; o entrelaçamento de histórias; o desenvolvimento de um enredo surpreendente. É um romance em sua melhor forma. Cativante, inteligente e detalhado. Recheado de elementos românticos e aparentemente tão simples como comer bolo e beber cerveja.
A habilidade de Maugham em contar histórias revela, no fim, como simples mentiras são capazes de mudar “o destino de um homem” — daí a versão em português. Sua verve atinge, sobretudo, justamente seus colegas e contemporâneos. São metáforas e eufemismos que se ajustam como uma luva à história, e que revelam nas entrelinhas muito do que era a hipocrisia daquele tempo morto, cheio de sutilezas e detalhes e regido por uma moral rígida.
Morto?