Letra de mulher

A escritora carioca Adriana Lisboa, em texto produzido recentemente para o suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo, afirmava ser quase inacreditável que o tema “literatura feminina” continuasse recebendo, da mídia e do meio literários
Ilustração: Ramon Muniz
01/08/2005

A escritora carioca Adriana Lisboa, em texto produzido recentemente para o suplemento Prosa & Verso, do jornal O Globo, afirmava ser quase inacreditável que o tema “literatura feminina” continuasse recebendo, da mídia e do meio literários, tanta atenção — na verdade, para citá-la literalmente, “uma atenção quase obsessiva”. No artigo, intitulado Literatura feminina: modos de enterrar, Adriana ainda se queixava da falta de entendimento de boa parte da crítica nacional que, ao receber a antologia 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organizada pelo escritor mineiro Luiz Ruffato, insistia em buscar e reconhecer, nas autoras compiladas, uma certa “voz feminina” e geral. De qualquer maneira, o projeto de Ruffato — que obviamente não visava levantar um cercado onde soltar, rotuladas, as escritoras que selecionou — foi um sucesso editorial, o que lhe permitiu lançar uma continuação daquele primeiro volume. Com a chegada ao mercado de + 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, o assunto volta à pauta. Para discuti-lo, o Rascunho convidou várias escritoras, de várias vertentes e regiões do país. O registro de tantas opiniões, se não aponta para uma conclusão única, revela um desejo comum a todas, expresso pela gaúcha Cíntia Moscovich: o de que a boa literatura sempre sobreviva aos rótulos que lhe impomos.

Cíntia Moscovich

De pé ou sentado

Literatura feminina existe. E também existe literatura homossexual, por seu turno dividida em literatura homossexual feminina e masculina, ambas subdivididas em categorias de ativo e passivo. Literatura negra também existe. Porque, claro, também existe literatura branca. E deve também existir uma literatura mulata, que é, claro, resultante da mescla da literatura branca e negra. Isso sem falar de uma literatura mameluca, que também existe, e que, se não existe, está por ser fundada ou descoberta, o que acontecer primeiro.

Dá para acreditar em alguma das afirmativas acima?

A discussão acerca da existência ou não dessas espécies subordinadas à literatura, vista como o universo maior, parece ser a única coisa que ainda existe. Entender a literatura como uma grande árvore, da qual a literatura feminina seria uma parte — um dos galhos —, é fracionar um sistema absolutamente orgânico e inteiro. Não posso entender isso de formar subdivisões, embora possa entender que, pelos frutos, se conheça a árvore. Mas, diferente de uma maçã ou de uma laranja, o texto literário não deixa clara sua origem, muito menos a mão que o teceu, se de homem, de mulher, de homossexual ou de qualquer outra divisão da humanidade que se queira fazer. Tampouco sei se literatura feminina é aquela de autoria feminina. Ou se é aquela em que há personagens mulheres. Uma ou outra, seja como for, parece por demais arbitrária e sem sustentação prática.

A discussão existe, é saudável e devemos ouvir o que é dito. Mas nunca, em tempo algum, importou se o autor de um texto faz xixi de pé ou sentado. Importa, e é a única coisa que importa, que a literatura seja boa, que desacomode o leitor e que, acima de tudo, pela qualidade intrínseca, sobreviva aos rótulos que volta e meia somos tentados a dar.

Os generosos volumes organizados por Luiz Ruffato (eu fiz parte do primeiro) são um sinal de que as mulheres estão produzindo, dispersas por esse país. Sinal de que, embora não tenhamos combinado nada, todas estamos produzindo. Agora, em pé de igualdade com os homens. E eles, os homens, em pé de igualdade com as mulheres. Finalmente, alguém que entende que o gênero humano é sempre o gênero humano e que a literatura é sempre literatura. Grande Ruffato.

Cíntia Moscovich é autora de Arquitetura do arco-íris, Anotações durante o incêndio, Duas iguais: manual de amores e equívocos assemelhados e O reino das cebolas.

Hortas capinadas

Acredito no termo “literatura feminina” tanto quanto acreditaria em “literatura masculina”; ou seja, considero um rótulo bastante tolo. Nunca vi nenhum jornalista perguntar a um escritor do sexo masculino se ele faz literatura para homens, portanto o inverso também é valido. Capinamos a horta um do outro nesse imenso campo que é a experiência humana, só isso. E as duas coletâneas organizadas pelo Luiz Ruffato (e eu participei da primeira delas) devem ser lidas como qualquer outro volume de contos de vários autores: escolhe-se um mote e mãos à obra. No caso dos livros imaginados pelo Ruffato, o mote era ulterior à obra. Um invólucro para a literatura e nada mais.

Leticia Wierzchowski é autora de A casa das sete mulheres, O pintor que escrevia, O anjo e o resto de nós, Prata do tempo e Um farol no pampa, entre outros.

Outra visão de mundo

Quando me perguntam sobre literatura feminina eu costumo responder que existe literatura feminina sim, por quê? Vai encarar? Sinceramente, não tenho nada contra o adjetivo. Sou mulher e mulheres escrevem diferente dos homens. Temos outra visão de mundo, outra forma de compreender as pessoas e vivenciar os relacionamentos. É evidente que essa diferença está presente nos textos que produzimos. Se tudo na vida passa pelo sexo, por que a criação literária não passaria? Pode me chamar de mulherzinha se quiser. Se disser que eu sou uma puta mulherzinha, melhor ainda. Só não pode dizer que “literatura feminina” é uma literatura idiota, desmaiada, enjoativa, sem nada a ver. Aí eu fico brava. Claro que tem mulher que escreve assim, mas também tem muito homem que escreve pior ainda. E nem por isso a gente sai por aí falando que a literatura masculina é isso e aquilo outro.

Ivana Arruda Leite é autora dos livros de contos Histórias da mulher do fim do século e Falo de mulher, além do juvenil Confidencial — Anotações secretas de uma adolescente. Já participou das antologias Geração 90: os transgressores e Contos de escritoras brasileiras.

Tércia Montenegro

Experiência traumática

Clarice, Lygia, Virginia, Katherine, Cecília e tantas outras. Boa companhia não falta, mas confesso que o conceito de literatura feminina já me incomodou. Admito que muitas vezes forcei a concepção de textos “masculinos”: histórias violentas sobre alcoolismo e prostituição, sob o ponto narrativo de um homem, num típico discurso machista. Considerava um elogio, quando alguém duvidava da autoria — a sensação que talvez Rachel tenha sentido quando Graciliano se convenceu de que O Quinze era obra, sim, daquela mocinha.

A origem deste meu autopreconceito provavelmente está no repúdio que desenvolvi a textos açucarados e extensos de psicologismo, obras que não conseguiam se sustentar sem a palavra “útero”, “gravidez” ou coisas do tipo — confissões de mulheres que achavam que o simples fato de pertencerem ao sexo feminino já era, por si, um valor poético. Antes de conhecer a literatura de grandes escritoras, eu lia aqueles horrores e dizia: não quero isso para mim. Da mesma forma, desenvolvi naquela época uma rejeição a toda e qualquer pessoa que se dissesse poeta sem motivo legítimo para isso. Para não incorrer eu mesma em heresias, escolhi praticar sempre a prosa.

Após anos de terapia literária, com imersão na arte de mulheres que tiveram o poder de me curar do bloqueio que os rótulos podem trazer, não me importo mais com conceitos ou parâmetros. Aprendi que o importante é escrever dentro de sua própria coerência. Mas, apesar de tudo, minha experiência traumática com aquela péssima escrita feminina me ensinou que ser mulher pode ter uma vantagem: seja pela complexidade advinda de hormônios, ou pela própria dimensão de abrigo que nosso corpo tem, estamos acostumadas a abarcar universos — o que pode significar que apenas uma mulher consegue escrever como uma mulher (isso, quando for do seu agrado; quando não, pode escrever como um homem também, numa boa). Em suma, hoje sei que literatura feminina pode ser qualquer coisa — essa expressão não condiciona estilo ou tema. É apenas uma indicação biográfica; não indica que a qualidade do texto está necessariamente garantida — nem, como antes eu pensava, ameaçada.

Tércia Montenegro é autora dos livros de contos O vendedor de Judas, Linha férrea e O resto de teu corpo no aquário. Participou da antologia 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira.

Maria Esther Maciel

Rótulo inconsistente

Tendo a desconfiar sempre das classificações, sobretudo as que se afirmam através de rótulos, por considerá-las arbitrárias e redutoras. Em se tratando, então, de literatura, fica ainda mais complicada qualquer tentativa de rotulação. “Literatura feminina” é um desses rótulos sem consistência que se sustentam menos do substantivo que do adjetivo. Este, “feminina”, acaba por delimitar aquele, “literatura”, a partir de critérios extrínsecos ao campo literário, como se houvesse uma relação determinista, especular, entre autora e obra, entre a realidade e a ficção.

É claro que todo escritor ou escritora deixa no seu texto as marcas (explícitas ou implícitas) de sua experiência, de sua relação com o próprio corpo e com o mundo. Isso, de certa forma, pode justificar uma recorrência maior, nos textos de uma escritora, de temas relacionados à sua experiência enquanto mulher. O que não significa que todas as mulheres devam necessariamente circunscrever sua literatura a tais temas ou que não possam se furtar a eles. E nem impede que assumam uma voz/persona masculina e tratem de coisas próprias da experiência dos homens. Fixar uma categoria para o que as mulheres escrevem não deixa de ser um preconceito. Como observou a escritora espanhola Rosa Monteiro: “Quando uma escritora cria um protagonista feminino, dizem que é literatura para mulheres; quando é um escritor quem cria um tipo masculino, dizem que ele fala sobre o gênero humano”.

Literatura que se preze não se deixa confinar nos temas que aborda. O trabalho literário é complexo e não se reduz a categorias estanques. Parafraseando Octavio Paz, classificar um escritor por seu sexo não é menos ilusório do que classificar os cavalos de corrida pela cor de seus olhos…

Maria Esther Maciel é autora de Triz e Dos haveres do corpo (poesia) e O livro de Zenóbia (ficção), entre outros. Também produziu diversas obras de teoria e crítica literária.

Ana Ferreira

Escrita não é esporte

Jamais me passou pela cabeça estar escrevendo para mulheres; ainda que sob a óptica feminina, antes de tudo conto uma história. E, considerando que metade da população mundial seja do sexo feminino, não haveria como não escrever sobre ele. Sim, há mais homens escrevendo sobre homens, e mulheres, sobre mulheres. Ainda assim não faz sentido segregar o trabalho de uma escritora e muito menos dividir literatura em categorias masculina e feminina, como se dá no esporte.

Existe literatura masculina? Não. Então literatura feminina seria um gênero? Policial, suspense, ficção científica, erótica, infantil etc — e feminina? Depois de Virginia Woolf, a classificação me soa incabível. Mulher não é gênero. E literatura não é esporte.

Ana Ferreira é autora dos livros Amadora (contos) e Carne crua (romance).

Em busca de um oásis

 A poesia extrapola a natureza para imprimir eternidade ao efêmero. Nesse sentido, ela não divide os sexos, mas os comunga. O que os divide são os papéis sociais a eles atribuídos. Tenho dúvidas quanto a espaços exclusivamente femininos ou masculinos. O princípio da troca é primitivo. Creio que homens e mulheres podem recriá-lo conforme seus gostos e necessidades. A expressão literatura atual alude a alguns nomes que conheço e quiçá a muitos que, infelizmente, desconheço. Entre eles figuram mulheres e homens que buscam leitores como quem busca um oásis.

Cida Sepúlveda é poeta e contista, autora de Sangue de Romã.

Um problema sociológico

O termo “literatura feminina” serve para confundir o que já é confuso. Existe por exigência de classificação e não atinge o seu maior significado, que é o grande número de mulheres nas letras. E elas serão boas ou ruins como os homens. Isso é um problema sociológico e não artístico.

Um livro é bom ou ruim, e entre esses extremos há tons de importância e gosto. Fora isso, há temas: posso escrever sobre retirante, gay, mulher, velho, anão. Mulher é um tema, só um tema. Se escrevo sobre cachorros, estou fazendo literatura veterinária?

Andrea Del Fuego é autora de Minto enquanto posso (contos) e já participou das antologias Os cem menores contos brasileiros do século e +30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira.

+ 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira
Diversas autoras
Org.: Luiz Ruffato
Record
302 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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