Lenta ruminação

"Reviravolta", de Gustavo Bernardo, está repleto de referências a escritores e filósofos e exige paciência do leitor
Gustavo Bernardo: o tempo e a morte no centro do romance.
01/12/2007

Reviravolta, o mais recente trabalho de Gustavo Bernardo, tem como protagonista o tempo. A conclusão de sua leitura levou-me a algumas reflexões, sobretudo, no que diz respeito ao desperdício desse tempo. Cabe lembrar que o tempo já foi merecedor de longos estudos, para não citar muitos, vamos de Santo Agostinho a Deleuze, passando por Nietzsche, lembram das Considerações intempestivas? No papel de coadjuvante de luxo, em Reviravolta, temos a morte. No início da trama, tempo, nascimento e morte se imbricam, permitindo ao leitor antever o tom da trama.

Esclarecendo: Reviravolta é um livro que logo em seu começo obriga o leitor a uma escolha: considerá-lo uma obra das mais sofisticadas, herméticas e por isso também de fundamental importância, como os que costumam considerar os filmes de David Lynch. Nesse caso, a obra estaria incompleta, pois faltaria a bula a orientar a leitura ou a informar os pré-requisitos para tal, ou então diagnosticá-la como algo confuso, sem propósito outro que não o de apresentar um narrador “sabidão” em que a trama, há que buscá-la com lentes de aumento poderosíssimas, também se faz confusa, mero pretexto para o narrador desfiar seus conhecimentos de física, futebol, teatro, informática e tecnologias das mais sofisticadas e imagináveis. De envergonhar meu contemporâneo Flash Gordon. Paciente leitor, livros como Reviravolta também servem para os resenhistas se informarem sobre alguns temas abordados pelo autor e depois desfiar um suposto conhecimento nas páginas dos jornais, na intenção de impressionar. Oh, quanta cultura! Ao optar por literatura desse quilate, o autor sabe que escreverá para poucos, para seus pares acadêmicos e um que outro erudito.

Reviravolta também pode ser lido como um autêntico dois em um: parte didático misto de conceitos filosóficos e científicos, em que cumpre sua função e deixa à mostra o professor Gustavo Bernardo, e parte ficcional em que o concerto desafina. Existe outra forma de ler Reviravolta: profissionalmente. E, neste caso, aconselha-se ao resenhista não pensar no tempo.

Gustavo Bernardo é professor da Uerj. Nesse terreno ele é inquestionável, suas aulas de Teoria da Literatura repercutem além campus. Quem não leu seus livros sobre a matéria não sabe o que está perdendo. No entanto, como ficcionista, abre por demais seu leque e depois não consegue fechá-lo sem visíveis prejuízos.

Mas vamos à trama.

Festa junina, 17 de junho de 1962. O que se deu nessa noite se repetirá por anos e anos. Apesar de os personagens crescerem, acabam sempre por voltar ao ponto de partida, a fatídica noite. E, no entanto, o tempo passa, ou melhor, o entrecruzamento de tempos e espaços, histórias paralelas em tempos diversos, uma pitada de ficção científica e de cultura clássica, Méier e um futuro distante, o que amarra essas pontas, o que pode amarrar essas pontas, a imaginação, a criatividade, nada mais. Aí entra o diagrama de Escher. O quê, inculto leitor, vai me dizer que não sabe quem é Escher? Não leve em conta este chiste, pois o Gustavo Bernardo acredita que você conhece.

Pois bem, o tal diagrama de Escher — “As mãos que desenham” — apresenta duas mãos em que cada uma delas é ao mesmo tempo criadora e criatura. Conferindo a narrativa a tal da circularidade.

“Ao invés de desdobrar os eventos, a reviravolta os redobra de fora para dentro e forma um sistema de hierarquias entrelaçadas. Nas reviravoltas aninhadas uma sombra se dobra sobre a coisa que a provoca, um laço enlaça a si mesmo por dentro.” Calma, afobado leitor, o trecho faz parte da trama. Manja a necessidade de ser pós-moderno, pois bem, Reviravolta é um romance pós-moderno, o insólito operando a desconstrução. Engana-se quem pensa em obra acessível. Uma passada pelos filósofos e pelos físicos ajudará a digestão.

Importante não deixar passar a questão do duplo embutida na narrativa de Gustavo Bernardo e aí vamos a Borges (percebam quantas referências numa história de meras 143 páginas).

Percebeu, tosco leitor, Deleuze, Borges, Nietzsche, Santo Agostinho, mais aqueles que o autor cita em meio à narrativa. Convém ter lido ou começar a ler essa turma. Caso contrário, você talvez se sinta como este cegueta resenhista, perdido. Mas calma, primitivo leitor, Goethe, ainda teremos espaço para Goethe. Calma.

Vamos retornar à noite em que tudo começa, se desenvolve e se repete. Nessa noite nasce Pedro Novo e Maria da Glória, gêmea natimorta. Em decorrência de problemas no parto, a mãe também morre. Enquanto isso o avô gasta seu tempo às voltas com um cubo enigmático, enquanto murmura “Mehr Licht”. Eu avisei que Goethe estava por chegar. O pai dos Pedros em permanente silêncio busca num rádio o resultado de um jogo de futebol ocorrido naquela noite. Ele nunca saberá o resultado, pois aquela noite não terá fim. Ainda na casa, as tias a preparar iguarias e o padre não poderiam faltar, pois a morte faz questão dessa gente.

A permanente noite alerta para a desarmonia que o amanhecer trará, representada pela destruição da casa da família.

Além do tempo, da morte, a solidão faz figuração importantíssima nas cenas de Reviravolta. Quando conseguem ultrapassar os limites da casa, os irmãos passeiam por uma cidade fantasma e ao anoitecer a família se isola no quintal. É nesse cenário que o autor trata com mão pesada o aspecto sentimental, abrindo ainda mais o leque de possibilidades do seu romance e jogando ora pra cá ora pra lá o eixo da narrativa, já por demais frágil. Chega ao ápice na piegas abordagem da relação entre Pedro e Maria. O sentimentalismo em Reviravolta é potencializado pelo exagerado material filosófico, científico e pela cultura de botequim. A crueza desses intervalos, por vezes, dura mais que o desenrolar da confusa trama envolvendo os Pedros e familiares destes.

Nietzsche diz no prefácio de Genealogia da moral que, para uma melhor interpretação, que para se ler mesmo um texto, é fundamental distanciar-se da humanidade, da pressa e do tumulto do mundo moderno e transformar-se quase numa vaca. A leitura como ruminação. Mas para Nietzsche o homem moderno não está afeito à arte da ruminação.

Reviravolta vai ao encontro da teoria da ruminação de Nietzsche, exige vários estômagos, todos devidamente aparelhados para cumprir suas obrigações, entre elas a de ler sem pressa. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche afirma que “o espírito é um estômago”. Desse modo, a prática da leitura bovina é altamente espiritualizada.

O ir e vir do tempo, a inversão da lógica temporal de Reviravolta exigem do leitor comportamento semelhante, avançar e retroceder na leitura para entender, para tentar entender, para enfim, ter a sua leitura.

Para concluir, vale buscar socorro em Escher para tentar elucidar o enigma Reviravolta no qual criador e criatura, passado e futuro, subvertem a lógica no ponto em que o autor buscou exatamente isto: a criação de um enigma. O personagem Pedro Velho talvez resuma de forma mais clara. Ele é refém de um mundo de imagens criado por ele mesmo, sua vida se apresenta fragmentada, a memória o castiga. Quem poderia salvá-lo é o narrador “sabidão”. No entanto, ele só repete “não sei” às perguntas de Pedro Velho. No entender deste aprendiz surge aí o ponto alto de Reviravolta.

Estou convencido de que a estrela dessa trama não é Escher e sim Nietzsche, que afirma ser impossível haver felicidade, orgulho, esperança e — chama atenção — presente sem a participação desse aparelho inibidor que é o esquecimento.

Preciso voltar a Nietzsche, preciso aprender a esquecer.

Intrigante leitor, a frase acima não tem nada a ver com o livro do Gustavo Bernardo, é só um recado pessoal, embora saiba que essa luta eu já perdi.

Reviravolta
Gustavo Bernardo
Rocco
148 págs.
Gustavo Bernardo
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1955. Doutor em Literatura Comparada, é professor de Teoria da Literatura no Instituto de Letras da Uerj. Com auxílio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisado CNPq, estuda as relações entre a literatura e o ceticismo. É autor, entre outros, de O mágico de verdade, Educação pelo argumento e Lúcia.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho