Lengalenga sertanista

Beletrista e vazia, obra de Afonso Arinos destila pretensa erudição em narrativas nulas
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/11/2011

Afonso Arinos é o típico caso de fama imerecida — ou, no que se refere à maioria das avaliações críticas, um exemplo de quanto nos habituamos a tratar o medíocre como admirável. Vício, aliás, facilmente encontrado nas resenhas que os jornais diários publicam, cujo teor oscila entre a cópia de releases ou orelhas, a cega repetição de academicismos e a troca de elogios entre colegas. Tratado por muitos como “fundador” do regionalismo brasileiro, fez mal o que, antes dele, outros, pouco lembrados, fizeram se não com genialidade, ao menos de forma a merecer elogios. Seus textinhos, no entanto, ainda hoje reeditados, encontraram abrigo no — utilizemos um vocábulo pernóstico, que Arinos certamente prezaria — valhacouto da academia, de maneira a confirmar uma das inúmeras patologias nacionais.

Pelo sertão, de 1898, pertence à escola do beletrismo, que cultua a fórmula “quanto mais requintada a linguagem, mais literária”. Lemos, por exemplo, Buriti perdido e temos a impressão de ouvir um discurso ufanista no Dia da Árvore: os alunos perfilados diante da mudinha recém-plantada; ao lado, hasteia-se o pavilhão nacional; canta-se o hino; e surge, então, o orador, velho mestre-escola, a um passo da aposentadoria, em seu terno justo cheirando a naftalina; as mãos trêmulas seguram as páginas do sonífero com que pretende incutir nas crianças rebeldes o amor à natureza; e segue-se o discurso de tom ditirâmbico, no qual foram espremidos os vocábulos mais arcaicos — e mais cultos! — que foi possível encontrar no dicionário carunchento. Cada nova hipérbole nasce com a finalidade de sobrepujar a anterior — e ao final temos páginas nas quais conseguimos ver apenas o rastro da brilhantina.

A cadeirinha, mero exercício de estilo, não pertence ao conjunto pretensioso de Buriti perdido, mas é somente uma crônica de veneração do passado, com trechos curiosos, os quais destilam, às vezes, certo pessimismo evolucionista.

Apenas uma cena surpreende em A esteireira, história de um crime de ciúme improcedente, quando Ana, a protagonista, depois de matar a suposta rival, comete inesperado gesto de vampirismo. Trata-se de narrativa retilínea, com exagero de termos regionalistas e final esquemático, previsível.

Se comparado a O gado do Valha-me-Deus, de Inglês de Sousa — que analisamos na edição de março deste ano do Rascunho —, Manuel Lúcio não passa de um esforçado trabalho de redação em que o aluno, adepto do maneirismo, usa linguagem exageradamente rebuscada: a fazenda “abria-se ridente entre as campinas alfombradas […], semelhando na perspectiva azul alguma nau capitânia pojada no remanso de uma baía”; ou “uma nuvem pulverulenta ergueu-se ao longe no carreiro que cintava a encosta como um talabarte polifêmico”. O protagonista, um vaqueiro, não imagina simplesmente, mas — acreditem! — “excogita”:

[…] desfibrando os sentimentos radicados, distendendo-os, como se quisesse com o duro plectro de sua análise ferir as cordas dessa gusla suspirosa.

Penosa de se ler, a narrativa nos faz lembrar, a cada parágrafo, que há mesmo formas difíceis e intrincadas de se contar uma história. As sentenças nos aprisionam num arcabouço de artificialismos — e, chegando ao fim, temos apenas um conjunto de frases de gosto duvidoso, do qual sobressai o esboço de uma trama que não empolga.

É também o caso de Paisagem alpestre, crônica de um diletante, peça recreativa que deseja mostrar ao leitor a beleza de bananeiras “onde melros negros afinam as gargantas para uma entusiástica overture”.

O narrador de Desamparados contempla a natureza e sente o espírito levantar-se “à indagação dos grandes problemas cosmogônicos”. Logo a seguir, sofremos a conseqüência do seu incrível êxtase e somos obrigados a ler mais um trecho pedante:

Pelas fraldas dos morros, cingindo-os, bordando os vales, em cujo fundo se espreguiçavam pauis sonolentos, o buritizal erguia suas verdes frondes, tão lavadas pelas chuvas e tão brilhantes, que se afiguravam majestoso gorjal de pedras finas.

Um inesperado personagem, louco manso, surge de surpresa — e o autor desperdiça a oportunidade de, a partir dessa figura, criar uma boa história.

Problema semelhante ocorre, aliás, no relato A velhinha, no qual a personagem sofre um destino que, nas mãos de qualquer escritor mediano, se transformaria em cativante narrativa. Afonso Arinos, no entanto, só consegue obrigar seu narrador a, descontando outras bobagens, perder-se em afetadas e exclamativas reflexões, nascidas do fato de encontrar, em certa “pobre salinha”, um cravo “incrustado de bronze e ornado de finos lavores de talha de madeira negra”:

— Restos de uma grandeza extinta! que triste fadário vos impeliu ao casebre de quem, por certo, vos não conhece a história nem o valor? Cravo centenário! que lânguida açafata ou melindrosa sinhá-moça esflorou o marfim do teu teclado, desfiando o ritmo grave de uma dança solarenga, ou, a furto, a denguice feiticeira de um fado vilão?

Na verdade, o trecho repete a fórmula de retórica utilizada em Buriti perdido.

A fuga, narrativa à qual o autor acrescenta a observação “Fragmento de um conto histórico”, é, infelizmente, mais que isso: trata-se de fragmento, sim, mas frágil e infantil, cujo final otimista está permeado de chavões.

Três décadas antes de Pelo sertão, Joaquim Felício dos Santos escreveu, em Memórias do Distrito Diamantino (que analisamos no Rascunho de setembro de 2010) narrativas em tudo superiores a O contratador de diamantes, de Afonso Arinos, que se perde em eruditismos e empolamentos: participantes de um baile se transformam em “levípedes de faces rubras”; vestidos têm “caudas roçagantes”; e algumas convidadas sofrem de “febre sibária”. A adjetivação, excessiva, chega a ser insuportável — e se não lançamos o livro pela janela, é só pelo receio de o volumezinho ser recolhido por um desavisado que, folheando-o, acredite estar lendo literatura.

Dividido entre o abuso de regionalismos e um incompatível exagero de preciosismos, Joaquim Mironga representa a síntese do que o rebuscamento da linguagem produz quando tenta ocupar o vazio criado por uma trama amorfa. Situação da qual não está muito distante Pedro Barqueiro, mera curiosidade, exercício de enredo medíocre.

O que resta
Descontada a presunção regionalista, Assombramento é o único texto que merece leitura. Os defeitos de Arinos estão todos lá, especialmente nos trechos em que idealiza a figura do tropeiro ou ressuscita a retórica alencariana, mas encontramos amostras de razoável poder de descrição, quando o autor abandona a tentação da literatice:

Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas, ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um moirão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.

Venâncio, homem mais velho, empregado de confiança do protagonista, é o personagem menos raso, espécie de Leporello em miniatura. A narrativa apresenta domínio da passagem do tempo, há cenas de relativo humor e, ultrapassado o segmento das assombrações — digno de constar em antologias de terror —, estabelece-se boa contraposição, por meio do relato do amanhecer bucólico e da lufa-lufa da tropa. O narrador mostra-se atento aos detalhes — por exemplo, a caliça que cai e enche de “pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros” — e, durante a luta com os espectros, gradativamente animaliza o corajoso Manuel Alves, até transformá-lo num “ururau golpeado de morte”. Saliente-se ainda o final, próximo de um “não desfecho” tchekhoviano.

Sertanismo enganoso
Como bem afirmou Lúcia Miguel-Pereira, na obra de Afonso Arinos “sente-se a incômoda presença de um certo convencionalismo sertanista”. Mas faz-se necessário maior rigor: o que Alfredo Bosi chamou de “acerto descritivo” e “fluência narrativa” não passa de fastidioso e irregular conjunto de textos — lengalenga regionalista recheada de sertanismo enganoso.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Xavier Marques e Jana e Joel.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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