Recebi a pauta do Relatos de um gato viajante e fiz como sempre faço: aceito sem pensar muito, aceito sem prestar muita atenção porque, sinceramente, confio no editor do Rascunho e ponto final. Então, caso o leitor não saiba: a minha pauta é sempre do editor. Posso aceitá-la ou não, é claro. Mas eu sempre aceito.
Ao chegar o livro, percebo algo que, fosse eu um pouco mais atenta, já saberia: Hiro Arikawa é uma mulher. Tenho um amigo de milênios com o mesmo primeiro nome, o Hiro Kozaka, e sempre achei que Hiro fosse um nome apenas masculino. Nada indica (por “nada”, leia-se “google”) que seja um pseudônimo. Por favor, não responda mentalmente com a patrulha ideológica a respeito de gênero, não é disso que estou falando, ok? E, em tempo, não faz a menor diferença.
Segundo o site da Companhia das Letras, Hiro Arikawa é “uma escritora japonesa, nascida em 1972 em Kochi. Seus romances são best-sellers no Japão e muitos deles já foram adaptados para a TV e cinema”. Começou mal, pensei. Não costumo gostar de best-sellers. Não por hype, não, mas porque normalmente seguem uma formulazinha que eu considero chata.
Comecei a ler Relatos de um gato viajante e, no início do livro, se abateu sobre mim uma certa má vontade. Achei que estava dentro de uma dessas páginas de gateiros no Facebook, onde o cotidiano é visto através dos olhos de um gato no Japão. Como coabitei com gatos minha vida inteira, sim, as assino (e gosto), mas não é algo que tenha material suficiente para um livro inteiro, pensei.
Relatos de um gato viajante é um kawaii, um gênero que abrange vários produtos culturais — incluindo anime, literatura, música, etc. — voltado ao público mais jovem (Hello Kitty é um exemplo máximo e caricato do gênero). Em japonês, kawaii quer dizer algo mais ou menos como fofo, amável, bonitinho, algo assim, não falo japonês. E o livro deve ser lido com isso em mente. Não é um livro pretensioso e não se propõe a ser um novo Botchan (Natsume Soseki, 1906).
Dois narradores
O livro tem linhas narrativas intercaladas e dois narradores. O primeiro, tradicional: onisciente, em terceira pessoa. O segundo narrador é um gato, em primeira pessoa. Por esse motivo, muita gente boa por aí acha que é um livro sobre a vida de um gato.
Relatos de um gato viajante não é um livro sobre gatos. Chega a me causar uma certa irritação a forma como o livro está sendo vendido. “Essencial para amantes de gatos” e comentários similares. Não faz a menor diferença que um dos narradores seja o gato. Podia ser um bebê, um cachorro, um rinoceronte ou uma cafeteira. A força da narrativa não está no fato de ser um felino. Aliás, quando a autora se dedica a tentar explicar o mundo sob a ótica dos gatos são justamente os momentos em que há um certo enfraquecimento. Mesmo assim, existem passagens gloriosas, como essa:
Seu burro, burro, burro! Todas as criaturas viventes sob o sol já nascem com o instinto assassino! E não adianta nem tentar escapar dizendo que é vegetariano — a única diferença é que nesse caso não dá para ouvir os gritos das plantas quando morrem! Caçar o que pode ser caçado é o instinto natural de nós, gatos. Sabe por que às vezes eu pego alguma presa e não como tudo? Isso se chama prá-ti-ca!
Ou então, quando o gato expressa o seu temor com a engenharia e a física náuticas:
Mas, escuta, quem será que teve essa ideia de botar em cima da água essa maçaroca de ferro do tamanho de um prédio? Se querem saber minha opinião, essa pessoa não batia muito bem. Coisas pesadas afundam: é um fato. Nenhuma criatura vivente neste vasto mundo, fora os seres humanos, tenta se opor às leis divinas. Realmente, o ser humano é um bicho esquisito.
Apesar de tudo isso, Relatos de um gato viajante não é um livro raso ou bobo. É um livro comovente. E é um livro de alguém muito, muito solitário. Existe, nessa solidão, uma certa beleza. Paulo Freire, falando de outra coisa, mas que me parece ter uma proximidade, em Pedagogia da Esperança (grifo meu), lembra que:
Ninguém chega a parte alguma só, muito menos ao exílio. Nem mesmo os que chegam desacompanhados de sua família, de sua mulher, de seus filhos, de seus pais, de seus irmãos. Ninguém deixa seu mundo, adentrado por suas raízes, com o corpo vazio ou seco. Carregamos conosco a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossa história, de nossa cultura; a memória, às vezes difusa, às vezes nítida, clara, de ruas da infância, da adolescência; a lembrança de algo distante que, de repente, se destaca límpido diante de nós, em nós, um gesto tímido, a mão que se apertou, o sorriso que se perdeu num tempo de incompreensões, uma frase, uma pura frase possivelmente já olvidada por quem a disse. Uma palavra por tanto tempo ensaiada e jamais dita, afagada sempre na inibição, no medo de ser recusado que, implicando a falta de confiança em nós mesmos, significa também a negação do risco.
Satoru, o personagem solitário e humano que acompanha o gato viajante, não nega riscos e não sofre por falta de confiança. É alguém em paz com aquilo que falta e com o que faltou em toda sua vida. Trechos de sua biografia são passados a título de lembranças em comum com quem encontra pelo caminho, pela viagem. O leitor vai, então, montando um quebra-cabeça com esses fragmentos de história. É uma forma bonita de se contar a vida de alguém, mas Relatos de um gato viajante cai um pouco na construção de um herói sem falhas, tão perfeito e magnânimo que seus amigos o invejam. E isso pode ser bem irritante em alguns momentos, mas os demais personagens compensam a falência humana que falta em Satoru.
Qualquer lugar
Não se deixe enganar pelo “viajante” no título. Relatos de um gato viajante não é um livro sobre o Japão. É um livro sobre qualquer lugar, sobre os nossos lugares. Assim como poderíamos perfeitamente estar lendo os relatos de uma cafeteira viajante, o cenário dessa viagem poderia ser tanto o Japão quanto Brasil, Zimbabwe, Quirguistão, Togo ou França. Ou qualquer lugar.
Lembrei de uma passagem do As cidades invisíveis, do Italo Calvino:
Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
— Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? — pergunta Kublai Khan.
— A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra — responde Marco —, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
— Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
— Sem as pedras o arco não existe.
Nesse sentido, Relatos de um gato viajante é um livro budista. Não, não se preocupe, não é um livro que vá tentar te converter a nada (talvez te convença a viajar, apenas). É budista no sentido do desprendimento da matéria. Fala das pedras para nos fazer perceber o arco.
O romance de Arikawa é conduzido através de paisagens japonesas e, claro, o Monte Fuji ganha certo destaque, mas a cena poderia perfeitamente ser em qualquer lugar:
Satoru falou várias coisas sobre a montanha: que seu cume é o mais alto do Japão, com altitude de 3776 metros em relação ao nível do mar (ele me ensinou até o trocadilho que usavam na escola para decorar essa altitude), e que, apesar de haver várias outras desse tamanho no mundo, essa é rara por ser uma montanha solitária e não parte de uma cordilheira. Mas, falando como gato, não me importo muito com essas coisas, não.
Os personagens principais, Satoru (humano) e Nana (felino), percorrem o Japão em busca de alguém que possa adotar o gato. Aqui, como poderíamos esperar de um romance kawaii, há uma certa idealização de ambos. O gato é caricato e o humano é aquilo que gostaríamos que todos fossem: gentil, generoso, etc. Obviamente que existem gatos e humanos assim, mas na idealização existe uma simplificação, uma ausência de complexidade. O humano é só gentil e generoso. O gato é só gato.
Há um leve toque de melodrama mas não chega a comprometer. O romance tem uma preocupação quase didática, natural se pensarmos seu público-alvo. No final, Nana (o gato) revê a trajetória. É um recurso muito comum em mangás e animes:
Todo mundo acha perfeitamente natural largar os gatos de rua por aí, mas Satoru me socorreu quando eu quebrei a perna. Só isso já teria sido um milagre, mas ainda por cima fui morar com ele! Fui o gato mais feliz do mundo.
Por isso, mesmo que Satoru não possa mais cuidar de mim, não estará me tirando nada.
Eu só ganhei. Ganhei o nome Nana e os cinco anos que vivi com ele.
O que eu jamais teria se não o conhecesse. Mesmo se Satoru acabar morrendo antes de mim, ainda sou mais feliz por tê-lo conhecido.
Essa simplicidade narrativa pode ser aparentemente rasa mas não é. Como disse Leonardo da Vinci, o simples é dificílimo.
A história vai lentamente preparando o leitor para o golpe final. Terminei o livro em prantos, mesmo com o final se tornando relativamente óbvio da segunda metade do livro em diante.
Relatos de um gato viajante é um livro sobre morrer, solidão, generosidade e amor. É tudo, menos um livro sobre um gato viajante no Japão.