Leituras acumuladas

Resenha de “Névoa”, de Miguel de Unamuno
Miguel de Unamuno, autor de “Névoa”
01/04/2013

Como tornar um clássico “visível” ao leitor contemporâneo — aquele sujeito que nem sempre presta atenção às indicações dos amigos e que resolve passear por uma livraria antes de escolher sua próxima leitura? Há pouco espaço disponível para tanto nas áreas de destaque das livrarias, que, com notáveis exceções, estão repletas de títulos que já venderam milhares (ou milhões) de exemplares em todo o mundo e que, espera-se, repetirão o desempenho em território brasileiro.

Mas voltemos à pergunta: como? Adaptações cinematográficas são, em geral, uma boa alternativa — mas raramente têm alguma participação da editora que publica as obras literárias que as inspiraram. Versões em quadrinhos são outra melhor ainda: têm um custo bem menor e também podem ser inscritas na seleção anual do PNBE — cujo objetivo é o “de promover o acesso à cultura e de incentivar a leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência”, segundo o site do MEC.

No entanto, aparentemente duas são as principais ocasiões em que se dá maior visibilidade a uma obra canônica de um autor morto há tempos: em aniversários com números “redondos” — como os duzentos anos do nascimento de Charles Dickens, completados no ano passado — ou no ano em que os direitos autorais de suas obras completas passam ao domínio público.

Primeira edição
Em 2012, dois grandes autores modernistas foram celebrados pela segunda razão: James Joyce e Virginia Woolf. Enquanto isso se refletiu de forma mais ampla na obra daquele — com novas edições, traduções e reimpressões de títulos como Cartas a Nora, De santos e sábios, Epifanias, Um retrato do artista quando jovem, Dublinenses, O gato e o diabo, Stephen herói, culminando com a presença de Ulysses na lista de mais vendidos —, no caso de Woolf o reflexo foi, digamos, mais convergente: se antes tínhamos apenas a clássica tradução de Mario Quintana para Mrs. Dalloway, hoje temos outras três opções em nossas livrarias.

Denise Bottmann, uma das novas tradutoras do romance cuja protagonista decide comprar as flores ela mesma, disse em entrevista, a respeito da pertinência de novas traduções da obra: “Há vários aspectos. O primeiro, e mais genérico, é que toda tradução autoral tem a marca pessoal do tradutor. O segundo, diretamente relacionado a esse primeiro aspecto, é que cada tradução vem muito marcada por sua época: toda tradução é, por definição, mais datada do que a obra original”.

Você talvez se pergunte “Mas, enfim, qual a razão dessa discussão toda?”. Simples: por algum motivo, eu acreditava que o caso de Névoa, livro escrito por Miguel de Unamuno (1864-1936) — um desses autores que costumam ser citados apenas pelos seus sobrenomes (como, aliás, consta da capa) —, era o mesmo de Mrs. Dalloway. Já tinha visto a obra ser citada nuns artigos aqui e em alguns ensaios acolá, de modo que julguei que os direitos autorais em domínio público tinham se aliado à necessidade de uma tradução menos datada, resultando em uma nova edição brasileira, lançada em meados de 2012.

Mal podia saber que minhas pesquisas a respeito de antigas edições brasileiras da obra seriam infrutíferas. Encontrei diversos títulos do autor no acervo da biblioteca pública que freqüento, que inclui a obra em questão em sua língua original (Niebla) — mas nada de Névoa. Ou seja: até que um antigo bibliófilo (ou alguém que conheça mais profundamente os logaritmos que põem o Google para funcionar) prove o contrário, estou diante da primeira edição brasileira desta obra.

Tom persistente
A capa, simples, não foge do padrão seguido pela Estação Liberdade nos livros clássicos que edita (Balzac, Flaubert, entre outros). A ilustração predominantemente branca — uma ruela arborizada de parque, com bancos e postes de luz, cujos traços vão se tornando menos detalhistas de acordo com a perspectiva — combina-se ao título para ditar o tom da narrativa. Ou melhor: o tom da nivola (mistura de novela com névoa, em espanhol).

Por um momento, enquanto ainda lia as orelhas e os textos que antecedem a nivola, pareceu-me que o gênero inventado por Unamuno seria semelhante ao desenvolvido por Italo Calvino em seu “romance” Se um viajante numa noite de inverno. Ao menos era o que prometia uma “obra-prima metalingüística para a qual convergem todos os estilos literários praticados” por seu autor (que, além de escritor, também foi filósofo e ensaísta), cujo enredo apresenta o desenvolvimento de um interesse amoroso do protagonista, além de certas desventuras de cunho literário. Mas as semelhanças param por aí: os livros não podiam ser mais diferentes.

A começar pelo desfecho, com a morte do protagonista, Dom Augusto Pérez. Calma, que isso é revelado ainda no prólogo — escrito, aliás, por um dos personagens, amigo próximo do dito-cujo. Víctor Goti, ao escrever o prólogo à força — “porque os desejos do senhor Unamuno são para mim ordens, na mais genuína acepção deste vocábulo” —, não perde a oportunidade de manifestar sua discordância quanto às circunstâncias da misteriosa morte de Augusto. Interessante notar que o autor, em seu próprio prólogo, chega a cogitar acrescentar a versão de Víctor no texto final.

Ao leitor contemporâneo, que talvez já esteja um pouco enfadado com tanta metalinguagem, tanto pós-modernismo, tanto livro do Vila-Matas, vale lembrar que a obra foi escrita em 1907 e que em 2014 completará um século de sua publicação. Para alguns, isso apontaria a importância de Unamuno como um precursor da literatura pós-moderna. Já para aqueles que não vêem razão em denominar algo como “pós-moderno” quando não há característica alguma que distinga o período/estilo dos anteriores, Névoa seria mais um exemplo de como não há nada de novo debaixo do sol: afinal, desde Cervantes (com seu Dom Quixote), as fronteiras “entre realidade e ficção, criador e criatura, arte e embuste, amor e obsessão” já eram dissolvidas.

A infinidade de temas abordados lembrou-me de uma vida de leituras acumuladas. Ora Shakespeare era suscitado pela memória (em especial Macbeth e A tempestade, com suas reflexões sobre teatro e sonhos, respectivamente), ora Pirandello e Antonio Tabucchi me vinham à mente (por causa dos diálogos entre personagens e autor, em Seis personagens em busca de um autor; e pelo constante apagar dos limites entre ficção e realidade). Próximo ao final, antes que certo personagem ganhe voz de modo surpreendente, lembrei-me, inclusive, de quando Neo descobre que a morte no mundo virtual se reflete em morte real, no filme Matrix — isso enquanto Augusto discute o seu destino com o próprio Unamuno.

Creio que seja um bom sinal quando uma obra não empalidece diante de tantas leituras anteriores. Bom sinal para Névoa, portanto.

Simplesmente clássico
Lembra o leitor hipotético que passeia pela livraria lá do comecinho? Em sendo um livreiro (deu para perceber que gosto do terreno das hipóteses), eu gostaria que fosse o suficiente dizer-lhe categoricamente que o livro é legal e que me diverti bastante (e gargalhei!) durante a leitura para atrair a sua atenção — praticamente da mesma forma pela qual me refiro a este livro quando estou entre amigos (às vezes, comparando-o a um waffle recheado com brigadeiro, morangos partidos, sorvete e M&M’s por cima de tudo — quer algo mais visível do que isto?).

Mas creio que não seria — assim como também não o seria nesta resenha. Pelo menos não quando se trata de um clássico. Não quando a capa é sóbria e simples. Ao menos, não no mundo contemporâneo.

Como tirá-lo das brumas e torná-lo visível, então?

Névoa
Miguel de Unamuno
Trad.: Fabiano Calixto
Estação Liberdade
256 págs
Miguel de Unamuno
Nasceu em 1864, em Bilbao. Escritor, filósofo e ensaísta, é também autor de Do sentimento trágico da vida e Três novelas exemplares e um prólogo, obras vanguardistas que o colocam ao lado de outros escritores da chamada Geração de 1898. Faleceu subitamente em 1936, em sua casa em Salamanca.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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