Quando li a primeira minuta do projeto do Proler, nos idos dos anos 90, discordei basicamente de duas posições ali contidas. A primeira, que saltava aos olhos, era um certo messianismo que fazia da leitura uma panacéia universal para todos os males sociais. E a segunda era a negação da escola como ferramenta de formação de leitores, por considerar a leitura como uma escolha só possível em liberdade. Neste sentido, pelo seu caráter “domesticador e repressivo”, a leitura deveria ser afastada da escola.
Ao negar o espaço escolar, abria-se a leitura para todos os lugares, propondo a organização de estantes de livros e bibliotecas no maior número de lugares possível. Com tal proposta o mundo seria tomado pelos livros. Você entrava numa funerária e os livros se misturavam com caixões e grinaldas; nas sapatarias, sorveterias, açougues e funilarias os livros estariam disponíveis em suas estantes. Sujos de graxa nas sapatarias e funilarias, melados de sorvetes nas sorveterias e tisnados de sangue nos açougues. E todos viveríamos felizes para sempre, já que havia algo de místico na idéia da leitura, algo sacrossanto, que fazia do ato de ler uma espécie de contrição capaz de transformar pecadores em santos. Sabemos que ler faz a diferença, reforça a cidadania, amplia as perspectivas, promove o desenvolvimento pessoal e social, mas ser um leitor não faz de uma criatura humana um anjo. Temos inúmeros exemplos de pessoas cultas, leitores vorazes, capazes dos atos mais brutais. Ora, ao tirar da escola o nicho formador da leitura, aquela idéia supostamente libertária jogava a leitura em todos os lugares. Mas quando algo não tem o seu lugar e quer tudo, acaba sem nenhum lugar. Entre os atributos da leitura não está o dom da ubiqüidade. Mas isto não era ainda o pior. Na falta de um lugar definido, onde concentrar esforços, apostava-se na saturação. E saturação tende a gerar banalização; pior, gera repulsa. Ocupar os espaços do mundo com livros para incentivar a leitura provavelmente tem o mesmo efeito de proibir livros e queimá-los, como no romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. É bem plausível que políticos sagazes combatessem a leitura pela simples saturação de livros.
Não sei se minhas objeções eram, e são pertinentes, não quero levantar nenhuma hipótese e nem estabelecer uma teoria sobre a questão. Mas creio que na qualidade de escritor, romancista e dramaturgo, que precisa de leitores para sobreviver, desde sempre ficou bem claro o papel da educação formal como alicerce da prática da leitura. Sei que há diversas definições para o ato de ler: sendo o mais abrangente aquele que define o leitor como alguém capaz de ler o mundo. Para dizer a verdade, eu prefiro o leitor que lê livros. E este, até que se prove o contrário, só se torna leitor depois que passa pelos bancos escolares. Lawrence Halliwell, autor de O livro no Brasil, o mais completo trabalho sobre a indústria editorial brasileira, diz em seu ensaio, após analisar a situação da escola na Inglaterra, que de cada dez alunos que saem do segundo grau, apenas quatro são leitores. Para Halliwell, ser leitor era alguém com a capacidade de ler e compreender qualquer nível de texto e formular, por escrito e com clareza o seu raciocínio. Por isso nos surpreende que na Inglaterra do Educational Act de 1944, e seus diversos aperfeiçoamentos, com um dos mais altos índices de leitura da Europa e dotada de uma quase perfeito sistema de bibliotecas públicas, se consiga formar apenas quatro leitores. Isto demonstra a dificuldade de se formar um leitor, e de como a educação em países como a Inglaterra, a França, a Alemanha e os Estados Unidos, entre outros, conseguiu elevar o número de jovens que saem leitores da escola. Este índice aparentemente baixo, de outro lado, também indica que o ato de ler não é um hábito que se pegue por osmose ou por saturação. E neste ponto concordo que se trata de uma opção, uma escolha, que a escola aponta o caminho, mas outras instâncias conspiram a favor e contra: ambiente familiar, classe social, etnia e religião. Uma família de não leitores, uma classe social que não sente necessidade de ler, uma etnia que não conhece a leitura e uma religião que segrega seus fiéis dificilmente produzirão leitores, por melhor que seja a escola. Esta escola produzirá alfabetizados, leitores funcionais, com a habilidade de ler suplementos esportivos, tablóides de escândalo ou publicações confessionais.
Escola melancólica
Na Amazônia, por exemplo, até quase meados do século 19 a língua portuguesa não era hegemônica. Quase todo mundo falava um idioma indígena materno e o nheengatu, a boa língua. Em muitas câmaras de vereadores o trabalho de secretariar as sessões e redigir as atas era confiado a índios alfabetizados nas missões católicas, já que os senhores vereadores não sabiam ler ou escrever. Em 1827, há apenas três escolas na Província do Amazonas, sendo uma na Barra (Manaus), outra em Barcelos e outra em Moura. Em 1800, uma escola de primeiras letras havia sido criada em Barcelos (então sede da capitania). Mesmo levando em consideração as diversas mudanças, o currículo escolar era limitado, segregador (apenas para os filhos de gente abastada), determinado pelo poder político, que também nomeava o professor e proibia a iniciativa dos particulares. O currículo abrangia as primeiras letras, a educação física e moral, caligrafia, doutrina cristã, numeração e primeiras regras aritméticas, estudo de gramática, noções de geometria aplicada às artes, história natural, história sagrada, história do Brasil e geografia. Para as escolas femininas, estava acrescido o currículo com a matéria de prendas domésticas. Uma escola melancólica para formar dóceis súditos, nunca uma elite pensante e criativa.
Em 1848 é fundado na Barra (Manaus) o que poderia ser chamado de estabelecimento de ensino secundário, o seminário de São José, lecionando gramática, francês, música e canto. Mais tarde, aritmética, álgebra, geometria, filosofia, retórica e geografia, abrigando uma média de 50 alunos. Uma transmissão desfibrada do saber, que virou tradição no primeiro reinado, onde prevaleceram as soluções burocráticas. O jovem era obrigado a receber uma educação que se comprometia a refletir um sistema tradicional de idéias consideradas universais e desligadas das necessidades do cotidiano, beirando a intolerância e o proselitismo. A educação será outro dever enfadonho da oligarquia iletrada. Com isso, tivemos no Amazonas uma forma de educação incapaz de formar um pensamento original, tão necessário aos processos de transformação. A educação era sempre um momento da infância e da adolescência, necessário e irritante, que provê o jovem de um título para concorrer a certos cargos públicos, bem como de certas habilidades práticas como redigir cartas, assinar o próprio nome e contar o dinheiro. Firmava‑se, naquela época a mitologia bacharelesca de que a Educação é um título em letras góticas sobre um pergaminho, que alguns poucos um dia poderão receber em tocante solenidade e em trajes domingueiros. É no marasmo do século 19 que a cultura será escamoteada ao povo, transformada em ritual ridículo e esvaziada de sentido. Nem mesmo a língua portuguesa esta escola parecia capaz de transmitir.
O poeta Gonçalves Dias, enviado ao Norte em 1853 pelo Império, como membro da Comissão Científica de Exploração, visitou diversas escolas e incluiu em seu relatório de viagem um capítulo sobre a educação no Amazonas, registrou a pouca freqüência às aulas e o fenômeno da rejeição da língua portuguesa por uma população de fala nheengatu, usada “em casa e nas ruas e em toda parte”. Os poucos que tinham recursos para freqüentar uma escola ou uma universidade no sul do país ou no exterior, voltavam tão desligados da vida pacata que não conseguiam mais compreender sua terra natal. Foi este relatório que desencadeou um programa educacional sem precedentes para o Norte do Império, provavelmente o único programa de grande extensão e investimento realizado pelo regime de Pedro II na área educacional. O resultado foi o surgimento de intelectuais e escritores nativos da região, que contribuíram para formar um pensamento e pela primeira vez interpretaram aquela realidade unindo a vivência e a erudição. A base educacional montada neste final do século 19 legou ao Brasil escritores como Inglês de Sousa e José Veríssimo.
Dois homens
Em 1853, nasce em Óbidos, no Pará, o romancista Inglês de Sousa. Filho de família abastada, estudou as primeiras letras em sua cidade natal, o que teria sido impossível se tivesse nascido uma década antes, e a seguir formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo. Herculano Marcos Inglês de Sousa, embora tenha sempre vivido longe de sua terra devido à sua atividade como juiz de direito, jamais a esqueceu, e toda a sua obra reflete uma aguda vivência e uma forte capacidade de observação crítica, fruto de uma infância entre gente de cultura, que formava um microcosmo civilizatório nesta rica área de pecuária tradicional e fazendas de cacau. Com O missionário (1888), sua obra mais famosa, o autor introduz no Brasil o naturalismo, mas com um certo mormaço, uma certa sensualidade amazônica, sem a fria liturgia da escola européia. Do mundo do cacau, antes do ciclo baiano que nos daria Jorge Amado, Inglês de Sousa legou dois extraordinários romances, O cacaulista (1876) e Coronel Sangrado (1877), que prenunciam o realismo crítico de Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Inglês de Sousa foi um homem influente em seu tempo, e não apenas como romancista. Fundador com Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira número 28, cujo patrono era Joaquim Manuel de Almeida, exerceu o cargo de presidente das províncias de Sergipe e Espírito Santos, fixando-se mais tarde no Rio de Janeiro, onde foi jurista respeitado. Homem afinado com os rituais do poder, advogado sagaz e bem sucedido, Inglês de Sousa, no entanto, escreveu obras densas, despidas de regionalismo. Uma visão nada complacente com as injustiças sociais e o abandono do homem comum na Amazônia. Ao lado de José Veríssimo, outra grande figura amazônica daqueles tempos difíceis e tristes, Inglês de Sousa compõe a dupla de homens de letras nascidos no grande vale.
José Veríssimo, também de Óbidos, onde nasceu em 1857, estudou suas primeiras letras em Manaus, cursando mais tarde, no Rio de Janeiro, a Escola Politécnica. Na opinião de seus contemporâneos e no julgamento da posteridade, foi uma das maiores culturas de sua época, além de escritor primoroso e crítico literário severo. Sua obra mais importante é História da literatura brasileira, de 1916, onde se contrapõe ao nacionalismo positivista e cheio de parcialidades do crítico Sílvio Romero, seu rival no campo da crítica literária. Seus Estudos de literatura brasileira, publicados em seis volumes, reúnem observações extremamente agudas, nada impressionistas, sobre a produção literária de seu tempo. Mas José Veríssimo tinha outra paixão, além das letras brasileiras, a Amazônia. Sobre sua região produziu milhares de páginas de estudos, crônicas, memórias e ensaios. Cenas da vida amazônica, de 1886, A pesca na Amazônia, de 1895, e Interesses da Amazônia, de 1915, mostram problemas que mais tarde se tornaram agudos pela cobiça e pelo descaso. São obras em que o Estado brasileiro aparece como algoz e o povo da região como vítima permanente. Esta escola certamente não formava quatro leitores em dez, mas se a Amazônia contasse apenas com a obra de José Veríssimo, já seria suficiente para provar que não há leitores sem escola, sem educação formal.
Fenômeno
Um outro resultado impressionante da política educacional do império foi a formação de um intenso e curioso mercado livreiro que funcionava não apenas através das dezenas de livrarias e editoras que funcionavam em Belém e Manaus, mas também pelo Reembolso Postal. O levantamento desde mercado ainda está para ser feito, mas já se sabe que foi nesta época que se formaram as primeiras bibliotecas privadas da região, algumas com milhares de títulos. Tive a sorte de ter acesso a algumas dessas bibliotecas particulares, como a de minha avó, Marcionila Senna, que depois foi desmembrada entre os filhos. Conheci a biblioteca do Dr. André Araújo, sociólogo amazonense, a biblioteca do professor Mário Ypiranga Monteiro e a biblioteca do professor Artur César Ferreira Reis. Tanto a biblioteca de minha avó, a menor de todas, com apenas 800 títulos, como as maiores, como a do professor Artur Reis, com dez mil títulos, possuíam acervos em três idiomas: português, inglês e francês. A biblioteca de minha avó havia apenas um título em inglês, mas ela era fluente em francês e por isso li Shakespeare pela primeira vez em traduções francesas de sua biblioteca. Alguns autores não podiam faltar nestas bibliotecas, como Coelho Neto, Machado de Assis, Shakespeare, Goethe e Anatole France. A existência deste mercado de livros importados é uma prova que uma única geração foi suficiente para a escola implantada pelo império gerar massa crítica suficiente para gerar um mercado de livros e o surgimento de escritores de grande categoria.
Um fenômeno semelhante, mas guardando as proporções, ao que ocorreu na Inglaterra em 1944, quando foi sancionado o Educational Act. Naquele ano o país ainda estava em guerra contra o Eixo. O acesso à educação era limitado. Em 1938, por exemplo, apenas um quinto das crianças recebiam educação formal após os 14 anos. Foi com a evacuação de milhões de crianças para locais seguro que as autoridades e a sociedade abriram os olhos para a situação educacional nas cidades e especialmente no campo. O fim das hostilidades também traria a idéia de que o país do pós-guerra teria necessariamente mais mobilidade social, as estruturas de classes seriam menos rígidas. Foi neste contexto que a nova lei se tornou um marco histórico de paz social e legislação social, além de promover o desenvolvimento acadêmico e aumentar exponencialmente o número de alunos. Os mais antigos ainda se recordam do plano de saúde gratuito nas escolas, do leite congelado no inverno e o transporte gratuito aos estudantes. A Inglaterra teve de se adaptar a muitas coisas nestes últimos 60 anos. Já não é um império e faz parte de uma comunidade de nações, a Comunidade Econômica Européia. Hoje há uma procura de profissionais altamente qualificados em diversos campos e a população escolar, que nos anos 40 era culturalmente homogênea, abrange muitas culturas e religiões. A estrutura familiar sofreu transformações radicais e as classes sociais estão mais difusas, mas a decisão de 1944 continua tão relevante hoje quanto naqueles anos de guerra.
Os resultados do Educational Act levaram mais tempo que o programa educacional de Dom Pedro II para o Norte do Império. Duas gerações se passaram para a Inglaterra efetivamente sentir a mudança. Mas os resultados não poderiam ser mais extraordinários. No final dos anos 50, explode uma nova geração de escritores e dramaturgos que tinham como principal característica as origens operárias. O crítico Raymond Williams escreve, em Encore: “O fato é que duas ou três gerações das classes trabalhadoras cresceram indo ao teatro…”.
A verdade é que por volta de 1957 a Inglaterra estava vendo surgir arte e literatura para todos os lados. E uma nova geração de leitores e espectadores estava lá para receber esses artistas. Produto do Educational Act, esta gente nova invadiu a metrópole cansada e fez despertar tudo aquilo em que tocou. A falta de engajamento com o mundo contemporâneo estava simbolicamente sublinhada pela presença de uma geração anterior de escritores que já estavam presentes antes da Segunda Guerra Mundial. Autores como Stephen Spender, W. H. Auden, Evelyn Waugh, T. S. Eliot, J. B. Priestley e George Orwell. No teatro, pontificavam Noel Coward e Terrence Rattingan. Mas esta percepção de que a cultura inglesa dos anos 50 continuava dominada por personalidades dos anos 30, cai por terra com a estréia da peça de John Osborn, Look back in anger, na noite de 8 de maio de 1956, seguido pelas estréias de A taste of honey, de Shelag Delaney, e The kitchen, de Arnold Wesker.
O número de bibliotecas públicas triplicou na Inglaterra em duas décadas, e nos anos 60 a indústria editorial ganhou músculos e não se tornou derivativa dos Estados Unidos, uma força centrífuga poderosa. Não conheço programas de leitura ingleses que atuem fora da escola. Em 1944 a escola democratizada foi suficiente para embasar a transição da potência imperial e colonial em nação democrática européia. Isto não teria sido possível sem cidadãos leitores, capazes de participar das mudanças que se fizeram necessárias, além de produzir novas gerações de escritores extraordinários. O processo que começou com os Angry Young Men e prosseguiu com The Beatles até chegar a Julian Barnes e aos musicais do West End que foram dominar a Broadway não terminou. O Educational Act passou por muitas reformas e transformações. Hoje os estudantes já não são submetidos ao conceito de “britanidade”, que significava antes de tudo seguir os preceitos cristãos da Igreja Reformada Inglesa. As ferramentas virtuais, computadores, games e vídeos entraram na escola, da mesma forma que os jovens de origem caribenha, africana, asiática ou do Oriente Médio, produtos da pulverização do império. Não sei se a escola inglesa ainda continua produzindo quatro leitores em dez, mas com toda a certeza no Amazonas o projeto de Dom Pedro II acabou em 1964, sendo substituído por uma escola tecnocratizante. Aliás, este foi uma das críticas que o Educational Act recebeu nos gloriosos anos 80 de Margareth Tatcher: o modelo era pouco tecnológico e humanista demais. A que o inspetor escolar David Bell retrucou em seu discurso comemorativo dos 60 anos do Educational Act:
Alguns argumentaram que o grande desapontamento foi a nossa incapacidade em criar escolas técnicas como uma opção real. Mas é uma ironia que apenas hoje se perceba o que se pretendeu com as escolas técnicas. E o exemplo é a The British School for Performing Arts and Technology, em Croydon, que possui um ethos positivo que enfatiza as técnicas cênicas de interpretação e um currículo que incorpora programas relacionados com a indústria teatral.
A busca pela liberdade
Jean-Paul Sartre, um produto da universalização do ensino na França, em seu livro de memórias sobre a própria infância, intitulado muito sugestivamente As palavras, divide seus anos de criança em duas fases, narradas em dois capítulos que ele chamou de Ler e Escrever. Para o filósofo, ler e escrever são etapas inseparáveis na construção de um ser humano. Ler e escrever é que o fazem criador de sua própria história e capaz de enfrentar as contingências na busca pela liberdade. Sartre revela-se como produto de uma estrutura educacional que ia da família para a escola sem solução de continuidade, quase uma coisa só. Em casa, convivia com o avô, que havia escrito uma gramática francesa, e seu grande território era a biblioteca, lugar de mistério e fantasia. A mãe, moça simples, gostava de ler em voz alta histórias românticas para ele, ou artigos de revistas semanais. Uma casa em que ler e escrever fazia parte da formação, tão óbvia que era esta escolha, em que os adultos eram leitores e aguçaram a curiosidade natural do menino ao mostrar intimidade com o ato de abrir um livro, como se abrissem um portal e atravessassem para outro universo. O menino abria os livros e tentava decifrar os códigos mágicos, tornando-se leitor e, a seguir, autor, saindo da infância para a adolescência, abandonando a sua fase inocente e ágrafa para a sua fase comprometida e escrita de adulto.
Mas se o exemplo de Jean-Paul Sartre pecar pelo eurocentrismo, voltemos ao Amazonas do século 21. Mais exatamente no norte amazônico, na região conhecida com Alto Rio Negro.
Ali vivem dezenas de etnias e são falados cerca de 30 idiomas, além do português, do espanhol e do inglês. A maioria dos povos daquela área é falante de mais de um idioma. Ao longo de quatro séculos foi o maior fornecedor de mão-de-obra escrava. Cálculos conservadores indicam que foram descidos cerca de 1 milhão de índios do Alto Rio Negro. Em meados do século 20 as etnias estavam desmoralizadas e em vias de extinção quando ali se instalaram os salesianos. Esses missionários, a despeito de alguns absurdos, como a destruição das malocas coletivas e a interdição das flautas de Jurupari, que foram profanadas em público, criaram uma rede de escolas e colégios profissionalizantes. Na década de 70, durante a ditadura militar, foi decidida a construção da Perimetral Norte, rodovia que deveria fazer parte, com a Transamazônica, de um plano de ocupação da região. Chegaram as empreiteiras e importaram trabalhadores do Nordeste. Eram analfabetos e o Mobral foi acionado. Precisavam de professores. Os técnicos do Ministério da Educação se espantaram com o grau de alfabetização das etnias, não sabiam que até 1964 a região Norte tinha menos analfabetos que São Paulo. Desconheciam o esforço educacional dos salesianos, e recrutaram entre os indígenas os professores para o trabalho de alfabetização dos operários. Mas foi somente em 1985 que um primeiro autor totalmente indígena pode responder com um livro o que havia aprendido nas escolas salesianas. Trata-se de Luis Lana, cujo nome em dessana é Tolomen-ken-jiri, autor de Antes o mundo não existia, narração precisa do mito cosmogônico de sua cultura, escrito em português e dessana, sob enormes dificuldades, em sua aldeia do rio Tikiê. Luiz Lana, que nasceu em 1961, filho do chefe de sua tribo, e fez o livro preocupado com a preservação do mito da criação do universo, acabou se tornando o primeiro índio a escrever e ter seu livro publicado em 500 anos de história do Brasil. Antes o mundo não existia está traduzido para diversas línguas européias e estimulou o surgimento de outros escritores indígenas, que estão tornando vernáculo seus idiomas ágrafos, e são editados pela primeira editora indígena do país, propriedade da FOIRN — Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Em 1987 a Secretaria de Educação do Amazonas cria o núcleo de educação indígena e edita cartilhas e livros didáticos nos idiomas originários. Nas áreas indígenas o ensino passa a ser na língua materna até os 8 anos, e depois em português seguindo o currículo oficial. Neste momento a Universidade Estadual do Amazonas acaba de instituir um programa para as etnias, com professores nativos e aulas ministradas em seus idiomas maternos. Em 20 anos de educação bilíngüe as etnias do Alto Rio Negro contam hoje com professores, médicos, engenheiros, economistas, advogados e até antropólogos. O que explica a criação de uma biblioteca e de uma mediateca virtual em São Gabriel da Cachoeira, cidade administrada pelos próprios índios, e o grande número de jovens autores ávidos em escrever sobre seu universo cultural, publicando livros que se esgotam antes mesmo de chegar às livrarias de Manaus.
Aceito que Sartre talvez não seja um bom exemplo. Sei que a Inglaterra é um país antigo e não serve de comparação com o nosso próprio país. Imagino que para muitos o Alto Rio Negro seja muito remoto. Sei também que a questão da leitura no Brasil não está apenas na educação. Mas sem uma educação que forme leitores, todas as outras mazelas continuarão perenes: escassez de biblioteca; o preço do livro acima do poder aquisitivo do povo, predomínio esmagador da indústria cultural etc. Como escrevi no começo desse ensaio: como escritor, prefiro leitores que leiam livros. Almejo ser lido por aqueles quatro leitores que o professor Lawrence Halliwell apontou como produtos da escola inglesa. Estou convicto de que tudo começa na escola e o resto é paliativo. Não acredito em programas de leitura messiânicos, admiro o esforço de algumas pessoas dedicadas que criam bibliotecas em áreas pobres das cidades brasileiras, invejo aqueles que entram nas penitenciárias com livros e me esforço sempre para estar longe de contadores de histórias. Escrevo todos os dias um pouco e me pergunto quantos leitores o sistema educacional brasileiro vai por nas ruas este ano. No dia que constatarmos que são quatro em dez, já será um triunfo, e todo o dinheiro investido terá sido justificado.