No começo, há o som de passos. O narrador os ouve e os segue. Os passos são discursos e o orientam rumo à desorientação porque o caminho proposto por eles é o do desvio. Em alemão, a palavra desvio é derivada da palavra caminho: Weg (caminho), Umweg (desvio). Esse prefixo “um-” sugere mudança, inversão ou movimento. Ele pode indicar uma locomoção espacial “em torno de algo” ou uma mudança de estado ou direção. Mudança, inversão e movimento são o que a leitora irá vivenciar em O fantasma do método, um inventário de deslocamentos: reais e imaginários — entre lugares, tempos, gêneros, línguas e escritas.
“Começo pensando que, quem sabe, cada poema, e cada livro, seja uma maneira de estar entre”, assim Paloma Vidal abre o seu livro Estar entre — ensaios de literaturas em trânsito. Na sequência, ela propõe esse “estar entre” como uma maneira de se fixar na vacilação para criar um espaço de “experiência comum” no texto. Algo muito parecido me parece ser evocado no livro de Eduardo Jorge de Oliveira, escrito entre os meses de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, durante inúmeras viagens por várias cidades europeias, especialmente Paris, Basileia e Zurique, onde o autor leciona. O título faz alusão ao Discurso do método, de Descartes; já o formato em fragmentos, alinhavados pelas reflexões de um narrador do tipo flâneur, lembra Passagens, de Walter Benjamin. Entre um e outro, o texto dialoga com inúmeras obras do cânone acadêmico. Não vou nem me aventurar por essas trilhas, pois não possuo a devida erudição. Em vez disso, seguirei aqui o som de alguns passos do próprio autor, deixando que abram caminho para uma leitura calcada no prazer da errância. Então, vamos lá:
Inscrevo este desvio a modo de compreendê-lo em corte e cicatriz. A única autobiografia é uma cicatriz na memória de um corte. Essa cicatriz tem a marca de um desvio… Ela é a marca de uma sedução contínua pelo desvio.
Assim começa a viagem: com o desejo irresistível de abandonar o caminho demarcado (alô, alô, Chapeuzinho Vermelho!), desejo esse movido pela vontade de expandir o saber, os saberes. E, ao inventariar as experiências desse vagar ao léu, o narrador está — veremos a cada quilômetro rodado — ao mesmo tempo afirmando o cogito cartesiano e sendo assombrado por ele. Em meio à vã tentativa de fugir do “fantasma do método”, ele sente que se afasta do nome. Um nome é, a um tempo, carcaça do eu e marca de sua origem, e a ambos ele sacrifica pela sedução do desvio, do perder-se. E de fato, ele se perde: “Está tarde para voltar a como me chamavam. Nado sem nome”.
Há uma segunda pessoa, que ora parece ser real, uma mulher, companheira; ora exerce a função de personificar o próprio cânone e seus discursos; já em outros momentos funciona como um duplo do próprio narrador. Em todo caso, é interlocutora e impulsionadora de suas reflexões e da subsequente escrita, que, nesse vaivém, assume o papel de um “céu estrelado e portátil”, substituto temporário do céu real, já que este se encontra longe do alcance da vista no espaço fechado das travessias, em sua maioria feitas de trem. Assim, sob o céu estrelado e portátil da escrita, o som dos passos (que acompanha o narrador durante toda a viagem) chega pela memória ou imaginação, enquanto a sua solidão, a do “estar entre”, revela-se povoada pelas vozes e silêncios de outros viajantes:
(…) solidão comunitária daquelas e daqueles que estão imersos nas próprias vidas, distraídos suficientemente com a leitura de partituras, com a força do canto das vogais, com um malabarismo impensado do corpo ou na banalidade de uma conversa telefônica.
E é exatamente pela escuta das alteridades que o narrador acredita chegar a si: “Desviaste de ti ou foste ao teu encontro?”.
Entre os temas abstratos que guiam suas reflexões, os pensamentos giram também em torno do cotidiano real como professor e, nesses momentos, ele nos revela um pouco de si, ao mesmo tempo que delineia uma persona. Ouvimos que terá que deixar seu posto em breve e precisa inventar um novo porto. Tudo parece estar em movimento, e esses deslocamentos se espelham numa escrita que não se deixa fixar em gênero nenhum:
A prosa me deixou na mão e a poesia me levou para muito longe de mim. Talvez seja o momento de abolir a diferença entre prosa e poesia ou, aqui é pesquisa acadêmica, ali é literatura.
Estar entre
A não fixação passa a ser, no entanto, um movimento consciente e programático em direção a uma libertação. O narrador intui que apenas uma escrita nômade, a escrita do “estar entre”, o levará aos novos lugares que busca e aos quais sente que pertence de fato.
Abro aqui uma janela: outro dia, a amiga, jornalista e doutora em Artes, Maria Fernanda Vomero, apresentou-me a um termo técnico alemão que eu não conhecia: Zugunruhe. Trata-se de um termo da ornitologia para descrever o estado de inquietação (Unruhe) sentido por aves migratórias (Zugvögel) nos dias imediatamente anteriores ao início da migração. Ou seja, uma espécie de “inquietação migratória”. Brincando em cima dessa ideia, fiquei pensando se nós, leitoras e escritoras, não somos todas, a um tempo, tanto observadoras como pássaros atacados por Zugunruhe, em busca, não do tempo, mas da liberdade perdida na literatura. Fecho a janela.
Porém, toda vez que o narrador parece estar chegando a algum território literário sem fronteiras, o fantasma do método volta a assombrá-lo:
O fantasma do método ronda as aulas de literatura. A tal ponto que se instala no inconsciente de textos histórico-críticos. História quer dizer distância. Faz-se todo um cerco aos textos literários. Passaram arame farpado. Há um exército. Uma voz de general busca controlar a interpretação. A aula de literatura beira um exercício militar. Um estudante grita que uma língua é um dialeto com exército. O fantasma do método dita as regras da direção da língua. Volto a ouvir os teus passos.
Os passos, por sorte, são discursos — e eles sempre voltam. O eco destes passos-discursos ancora o texto, que vacila entre a construção de um personagem autoficcional e um exercício contemplativo sobre questões advindas da própria errância, abrindo alas para o equívoco que, por sua vez, não se apresenta como falta, mas o contrário:
(…) há uma força no equívoco, nos gestos, na pretensão de um‚ “tudo ao mesmo tempo agora“ cronofotográfico (…) O equívoco não é engano nem desilusão (…) Há uma poética do equívoco.
Aqui, lembrei-me do ensaio Sobre aquilo em que eu mais penso, de Anne Carson, onde ela defende o erro como base da escrita poética, pois “aquilo a que nos prestamos quando fazemos poemas é o erro”. Aliás, foram muitas as conexões com os escritos de outras autoras e autores durante a leitura deste livro curto, mas amplificado pelas intertextualidades. Cada um de seus 62 fragmentos traz, condensadas, ideias e reflexões que, por sua vez, levam a outras ideias e reflexões, como ondas produzidas por pedras lançadas num espelho d’água, de modo que o texto, como um dos livros citados nele, é “definitivamente para ser lido a conta-gotas”.
Assim, O fantasma do método revela-se um texto denso e enigmático, que não se encaixa em gavetas classificatórias de gênero, podendo ser lido tanto como um diário literário de viagem, um ensaio filosófico em fragmentos ou mesmo uma coletânea de poemas em prosa, e que continua ecoando ainda por muito tempo após o fim da leitura.