O mercado editorial acaba de inventar uma profissão: o “leitor sensível”. O novo operário da cadeia produtiva do livro aponta, ainda no original, conteúdos que possam afrontar minorias. Surgido em países de língua inglesa, o “sensitivity reader” tem por missão evitar que determinados grupos sociais se sintam mal representados pelos autores. E, para executar esse trabalho, não é preciso ter formação literária; o profissional se qualifica por características como cor da pele, orientação sexual, histórico de abuso etc. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, o “leitor sensível” já dá seus primeiros passos no Brasil — a Companhia das Letras teria contratado a travesti Terra Johari para colaborar na tradução de Fera, da americana Brie Spangler. Se a prática vingar, publicaremos textos mais politicamente corretos. Só não sei se poderemos chamá-los de literários.
A literatura, como toda forma artística, não é estanque. Ela incorpora o espírito do tempo, o zeitgeist, isto é, o clima intelectual e cultural do período em que se insere. Para notar como o romance mudou ao longo dos anos, basta ver quantos caminhos esta forma narrativa percorreu de Stendhal a Proust, de Defoe a Joyce, de Machado a Ruffato. Nada mais natural, portanto, que o texto literário continue a mudar e que absorva as transformações de sua época. Em um mundo onde inclusão passa a ser palavra de ordem, as representações das minorias históricas tendem a se transformar. Mas este deveria ser um processo orgânico, não um dedo apontado na cara do escritor.
Em arte, nada me parece mais fundamental que a liberdade criativa. Por isso, no texto de ficção, o autor deveria ser soberano; cabe a ele a construção da história que deseja dividir com o leitor. E escritores não são mamães que nos contam fábulas edificantes quando estamos na cama prestes a dormir. Eles, não raro, se apresentam como pesadelos que nos assombram no meio da noite. A literatura, embora possa trazer o conforto da identificação, também incomoda, fere, assusta. Quem lê sabe que, nos livros, encontramos o céu e o inferno, a salvação e a perdição eterna. Ou seja, o ser humano com todas as suas virtudes e desvios. Não compreender essa natureza é subtrair o que a literatura tem de melhor.
Quem lê sabe que, nos livros, encontramos o céu e o inferno, a salvação e a perdição eterna. Ou seja, o ser humano com todas as suas virtudes e desvios.
Corpo estanho
Nesse sentido, o “leitor sensível” nada mais é que um corpo estranho. Um príncipe da ética tentando ditar leis no reino da estética. Sem falar que julgar um texto com base na voz e na ação de narradores e personagens é um equívoco elementar. Aquelas “pessoas” não existem no universo tangível – são obra da ficção – e suas ações não são penalizáveis. Se assim o fossem, que trabalho teria a justiça para meter na cadeia Humbert, o padrasto de Lolita. Mas entendo que o leitor se sinta ofendido ou desgostoso com determinadas narrativas. Entendo que se frustre ao ver os preconceitos e as sujidades do real refletidos no texto literário. E acho mesmo que a sociedade tem pleno direito ao boicote. Mas estou certa de que, se o texto tiver força, passará incólume pelos ovos e tomates podres dos contemporâneos.
A questão não é aprovar ou desaprovar o trabalho do escritor X, mas o tolhimento à criação literária (e corroborado pelas editoras, o que é pior). Caso a figura do “leitor sensível” vingue, com que tipo de questionamento os autores se debaterão em suas mesas de trabalho? Estarão preocupados com a organicidade da história ou com o sujeito que logo mais passará a caneta vermelha sobre o texto? Uma edição que condiciona o autor a adotar valores externos à ficção não cumpre qualquer papel no desenvolvimento da escrita. Quantas ideias serão esmagadas ainda na semente… Nabokov, Jorge Amado, Pedro Juán Gutiérrez, Houellebecq e Bukowski, para citar alguns exemplos, não teriam a menor chance nesse mercado 100% bacaninha.
O autor deve conhecer as responsabilidades de seu ofício. Deve saber que as mãos dos leitores podem se voltar para ele com flores ou com pedras. E à editora cabe compartilhar os riscos, inclusive o da completa indiferença ao que foi publicado. Muitas obras desaparecem para sempre e algumas poucas resistem ao tempo. Mas o fato é que raramente tivemos tino apurado para julgar os trabalhos de nossos contemporâneos. São as gerações vindouras que escavam e descobrem aquilo que se encaixa no cânone. Logo, deixar de publicar um texto porque ele vai de encontro à ética vigente é um erro grosseiro. A literatura não precisa carregar o peso de transformar o mundo. Transformem o mundo e a literatura será transformada.