Legião de dissidentes

Na algazarra, muitas vozes se destacam entre os novos contistas brasileiros
01/11/2002

Não se pode afirmar que vivemos uma reprise do boom de contos da década de 70, que revelou os mais importantes escritores brasileiros em atividade. Por outro lado, não se pode desmentir também que experimentamos uma renovação do gênero, passando a converter a impossibilidade de dizer algo novo em mais uma possibilidade de fabulação. A antologia Geração 90: Manuscritos do computador (Boitempo Editorial, 2001), organizada por Nelson de Oliveira, começou a conspiração de talentos do novo século, identificando 17 promessas cumpridas, do norte ao sul da linguagem. Uma outra amostra da pujança esteve representada agora no Concurso Cruz e Sousa de Contos/2002. Foram 1.444 originais enviados por autores de todo o país. De onde saíram tantos contistas? Essa pergunta acaba sendo secundária diante de outras: o que eles querem? O que eles procuram? Por que escolhem um gênero ainda com resistência editorial? O escritor Miguel Sanches Neto acabou sendo eleito o vencedor com Hóspede secreto e vai receber um prêmio de R$ 80 mil (leia à página 24 o conto O herdeiro). Em segundo lugar, ficou o carioca Luís Pimentel, com Grande homem mais ou menos, contemplado com R$ 40 mil. O gaúcho Jerônimo Teixeira obteve a terceira colocação e R$ 20 mil, com Pedacinho do céu. Afora as atraentes cifras, a montanha de inéditos vem se deslocando em direção a Maomé.

Em matéria especial ao Rascunho, nove contistas são analisados, desdobrados e, quem sabe, confirmados. Foram escolhidos nove lançamentos que despertaram no mercado: Livro das cousas que acontecem (Daniel Pellizzari), Os leões selvagens de Tanganica (José Eduardo Degrazia), Dezembro indigesto (Ronaldo Cagiano), Se choverem pássaros, (Altair Martins), Desa(a)tino (Leonardo Brasiliense), Falo de mulher (Ivana Arruda Leite), Epigrafias (Maurício Arruda Mendonça), Stereo (Maurício Salles Vasconcelos) e A razão selvagem (Francisco de Morais Mendes). Há uma variedade de estilos e agressões, sem patrulhamento estético e ideológico. Uma das evidências em comum: o conto já não é aquele espiritual, de Poe a Cortázar, de Tchecov a Machado de Assis. Os copistas transcenderam as técnicas de composição. Histórias em quadrinhos, pintura, fanzines, televisão, cinema, uma série de suportes movimentaram a dicção e criaram uma distinta biologia autoral. O absurdo é verossímil, o desfecho final dispensável, a surpresa está fora de ordem, o experimentalismo atingiu o preciosismo e a concisão poética. Até as brincadeiras são levadas a sério. O cotidiano vai sendo dissecado com a estranheza da observação, a perturbação de ser ninguém e todos ao mesmo tempo. O nome correto da safra é legião, mas uma legião com fortes dissidências.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho