Uma cidade hostil: Curitiba; lugar onde mora uma família que nasceu e cresceu na decadência, colecionando derrotas e sentimentos trágicos. Com estes elementos Mário Araújo fabrica seu primeiro romance, Breu, narrado a partir da saga de mulheres, parentes que se amam e se odeiam com a mesma intensidade. O resultado é um texto onde se mesclam a personificação de uma sociedade reclusa com a necessidade de uma abertura política e social, pontilhada por mesclas psicológicas.
Todos estes elementos, naturalmente, estão presentes nos contos de Mário Araújo. Seus dois livros anteriores mostram um prosador conciso, que elege o recorte de um instante para revelar homens e mulheres solitários em pequenas transgressões. Breu segue a mesma linha. Embora conte de uma família, seus personagens parecem viver em universos individuais. Se visitam, se abraçam e até se amam, mas estão sempre sozinhos frente ao próximo.
Em linhas gerais, a família do enredo vive uma guerra intestina agravada pelos fatos pueris do cotidiano, como a escolha onde os irmãos vão sentar durante um passeio de carro ou o descuido do cunhado que suja o piso da casa da irmã com os sapatos tomados de lama. Aliás, este é também um detalhe a agravar a desavença entre os cunhados, os pais das primas Edna e Úrsula. Enfim, vive esta família qualquer, quase sem sobrenome, no limiar entre a classe média baixa e a pobreza, carregando em si todas as desgraças que decorrem desta condição.
Como se vê, para usar de chavões já em si desgastados, estamos diante de um legado de tragédias, um inventário de perdas construído a partir de miudezas como os carros, os objetos e as moradias que vão definindo a condição social dessa gente. Aliás, esses imóveis vão surgindo amiúde e se recheiam com os cheiros trágico da família: “era a casa em nudez original, anterior aos segredos”. Enfim, as tragédias são ditas com certo lirismo, mas o escritor não as despe de sua condição de horror.
Reino de submissão
Mário desenvolve a narrativa em torno de cinco mulheres: Úrsula, Edna, Inácia, Marli e Aline. Elas podem ser lidas como protagonistas, no entanto protagonizam um reino de submissão. Aliás, a natureza de subordinação dessas mulheres é um carma indissolúvel. Não há escapatórias. Quando uma delas, Olivia, filha de Aline, começa a aflorar para uma esperança de ascensão social, morre. E a opressão familiar continua criando mulheres medrosas, seres que quando pensam na vida que poderia ter sido, tudo é tarde. A velhice chegou, o horizonte fechou, a morte as visitou, o machismo secular é aceito como natural e elas vão vivenciando fantasias e sonhos, transgressões que não se concretizam.
Breu se passa no espaço físico do Sul do país. De Porto Alegre e de outras cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, toda família migra para se reunir, ou desunir, em Curitiba. Daí aflora a sutileza narrativa de Mário. Mesmo falando de uma gente tão próxima, com formação cultural e histórica tão comum, os personagens têm traços de personalidade que sobressaem nas pequenas crenças e manias. E é destas sutilezas que Mário tira o cerne de sua prosa.
É também de maneira sutil que o escritor vai situando o leitor nos fatos históricos acontecidos entre 1963 e 2008, espaço temporal do romance. Mas esses acontecimentos trazem ao romance apenas a base que destaca a formação do caráter da família, um núcleo que tenta vencer os adventos da opressão, no entanto eles estão entranhados na carne e nos sentimentos mais íntimos de cada um.
Naturalmente que Mário procura fazer de seu texto aquilo que se convencionava chamar de narrativa psicológica, onde os sentimentos e as crenças dos personagens é que ditam suas ações. Assim há sempre a resignação com o destino, com o fato de que Deus cria as dores que suportamos. E aí surgem as diferenças religiosas de cada um, outro ponto de desavença. As diferentes práticas católicas e evangélicas, no entanto, terminam os unindo no mesmo baú de sofrimentos.
Lirismo
A narrativa está centrada em miudezas, já se disse, como o lento surgir da calvície do pai de Olívia. Por isso, é bom o leitor não tentar construir a árvore genealógica dessa gente. Mário emaranha a teia de parentes e cabe ao leitor seguir a saga de um organismo vivo, mutante. E seguir também o discreto e constante trabalho do autor com as metáforas. Assim pode até se divertir com a irreversibilidade e o anonimato do fuzilamento usados para falar do surgimento das histórias e do despertar dos segredos da família, ou do macarrão que se puxa para dentro da boca para dizer da necessidade de esconder rapidamente qualquer possibilidade de alegria.
Em Breu, tudo é desalento e degradação, é verdade. No entanto, não estamos diante de um texto derrotado, macambúzio. O lirismo termina por suavizar a tragicidade e por trazer um ritmo lento, mas envolvente, à narrativa. Enfim, um romance que, em si, faz o inventário de um país que teve que se modernizar a fórceps.e ela pretendia fugir saindo depois do almoço e voltando ao anoitecer.