É um quarto de hotel em Gloucestershire, Sudoeste da Inglaterra. Patrick Melrose joga seu smoking na cama e deita-se ao lado, matando tempo à espera do baile do qual participará mais tarde. Aos trinta e tantos anos, ele é descendente de uma família aristocrata, de sangue nobre e dinheiro velho. Vivera em meio a pinturas de Correggio, sacadas que davam para fileiras perfeitas de vinhas e mobílias como a cabeceira marrom e dourada comprada pela avó, duquesa de Valençay, “de um vendedor que lhe garantiu que a cabeça de Napoleão tinha repousado nela pelo menos uma vez”.
Mas toda a imponência da linhagem restava longe do aposento do Little Soddington House Hotel. Após sofrer abusos sexuais de seu pai na infância, Patrick afundou-se nas drogas durante a juventude. E agora, longe do vício e próximo da bancarrota, ele mantinha em algumas ocasiões sociais o vínculo com o passado — esnobes cínicos, alpinistas sociais, novos ricos, sanguessugas, viciados e pervertidos. Elencando esses personagens com certa dose de nostalgia, pergunta-se:
O que poderia fazer além de aceitar a perturbadora dimensão ficcional da memória e esperar que a ficção estivesse a serviço de uma verdade representada menos ricamente pelos fatos originais?
Esse questionamento ao final de Alguma esperança, o terceiro dos Romances de Patrick Melrose, de Edward St. Aubyn, é uma síntese da estreita relação entre a vida do autor e sua criação literária. Após Não importa e Más notícias, o escritor inglês encerraria ali uma primeira série de livros autobiográficos que giravam em torno dos estupros paternos que ele próprio sofrera — e, mais do que isso, retratavam o ambiente cruel, cínico e um tanto cômico da aristocracia britânica.
Uma dança para a música do tempo
Recém-lançada no Brasil, a trilogia foi escrita há mais de duas décadas. Lida hoje, pode até ser comparada aos volumes memoriais de Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard. Mas esse paralelo óbvio esconde o que há de mais brilhante nos romances: descrições precisas das personagens e das situações que compõem o universo dos muito, muito ricos.
Como George Watford, “duque inglês e exilado fiscal”, convidado dos Melrose que usava “sapatos que se afunilavam em níveis praticamente impossíveis” e cuja cara “parecia de madeira e era coberta por finíssimas rachaduras, como o verniz das obras dos Mestres Antigos que ele tinha vendido e assim ‘chocado a nação’”. Descrito dessa maneira nas primeiras páginas de Não importa, o velho Watford só seria mencionado novamente no início de Más notícias — justamente como portador dessas notícias — ao contar a Patrick que seu pai falecera. Reapareceria por alguns momentos no grande baile do terceiro livro, com mais de oitenta anos, “estremecendo enquanto penava para ficar de pé” e relembrando “uma ou duas leis” que ajudara a passar na Câmara dos Lordes.
Figuras como essa vêm e vão ao longo da narrativa, lembrando o extraordinário A dance to the music of time, de Anthony Powell. Ao estilo de Nicholas Jenkins, Patrick Melrose é a personagem central, mas as pessoas em seu entorno é que, muitas vezes, ganham o protagonismo. A atenção aos detalhes, aos cacoetes e aos petiscos de personalidades é uma herança de Powell — além de outras minúcias, como os nomes “Bossington-Lane”, “Chilly Willy” e “Jacques d’Alantour”, que nada devem à sonoridade de “Widmerpool”, “Gypsy Jones” e “Sir Magnus Donners”.
Separados por uma geração — St. Aubyn é amigo de Tristram Powell, dramaturgo e filho de Anthony —, ambos cresceram em um ambiente semelhante: berço de ouro, família materna com posses, família paterna com patentes militares, extensa e irrequieta vida social. A diferença entre os dois está no desastre particular do abuso sexual. Sendo assim, enquanto Nicholas Jenkins vive relativamente em paz ao lado de suas companhias idílicas, o elenco que circunda Patrick Melrose é quase sempre pintado com rancor, pena ou desprezo.
Diálogo e empatia
Levando em conta todos esses elementos, eram grandes as chances de o enredo cair em uma milonga ressentida. Mas Edward St. Aubyn poupa o leitor de uma sessão de terapia assistida, sobretudo por dois motivos: escreve muito bem e possui um senso aguçado de empatia.
As melhores páginas dos Romances lembram a comedy of manners presente na literatura inglesa do final do século 19 e início do 20 — de Oscar Wilde a P. G. Wodehouse, mas principalmente em Evelyn Waugh. No segundo livro, dias após a morte do pai, Patrick Melrose encontra-se com velhos amigos da família no Key Club, o “templo das virtudes inglesas” em Nova York. De tapa-olho, camisa suada grudando nas costas e tão desajeitado quanto Paul Pennyfeather, ele conversa com George Watford em uma “sala apainelada cheia de poltronas de couro verde e marrom de estilo vitoriano e enormes pinturas brilhantes de cachorros com aves em suas obedientes bocas”:
“Olá, George.”
“Está com algum problema no olho?”
“Só uma pequena inflamação.”
“Ah, querido, bem, espero que você melhore”, disse George com sinceridade. “Conhece Ballantine Morgan?”, perguntou, virando-se para um homem pequenino de frágeis olhos azuis, cabelo branco impecável e um bigode bem aparado.
“Olá, Patrick”, disse Ballantine, dando-lhe um firme aperto de mão. Patrick reparou que ele usava uma gravata preta de seda e se perguntou se ele estaria de luto por algum motivo.
“Fiquei muito triste quando soube de seu pai”, disse Ballantine. “Não cheguei a conhecê-lo, mas, com base em tudo o que George me contou, parece que ele era um grande cavalheiro inglês.”
Santo Deus, pensou Patrick.
“O que você andou dizendo a ele?”, Patrick perguntou a George em tom de censura.
“Apenas que seu pai era um homem excepcional.”
“Sim, tenho o prazer de dizer que ele era excepcional”, respondeu Patrick. “Jamais conheci alguém como ele.”
“Ele se recusava a se comprometer”, disse George, arrastando as palavras. ”Como era mesmo que ele costumava dizer? ‘Nada mais que o melhor, ou então nada.’.”
Anos mais tarde, quilômetros mais longe, ninguém menos que a Princesa Margaret, irmã da Rainha Elizabeth, aparece em um baile da roda social dos Melrose. O embaixador francês também está lá.
Em sua avidez por mostrar seu amor pela carne de veado da alegre e velha Inglaterra, o embaixador ergueu o garfo com um gesto tão extravagante de apreciação que espirrou brilhantes glóbulos marrons na parte da frente do vestido de tule azul da princesa. “Estou absolutamente horr-rrorizado!”, exclamou ele, sentindo-se à beira de um incidente diplomático.
A princesa comprimiu os lábios e virou os cantos da boca para baixo, mas não disse nada. Deixando de lado a piteira na qual estava enroscando um cigarro, ela pescou seu guardanapo entre os dedos e estendeu-o a Monsieur d’Alantour.
“Limpe!”, disse com uma simplicidade assustadora.
O embaixador empurrou sua cadeira para trás e caiu obedientemente de joelhos, molhando primeiro o canto do guardanapo num copo d’água. Enquanto esfregava as manchas de molho no vestido dela, a princesa acendeu seu cigarro.
Edward St. Aubyn poupa o leitor de uma sessão de terapia assistida, sobretudo por dois motivos: escreve muito bem e possui um senso aguçado de empatia.
Estão aí o ritmo, o tom, a graça, o wit. Em jantares, festas, bailes e rendez-vous, St. Aubyn recria o ambiente do privilégio inglês mais com diálogos e descrições do que com análises sociológicas. Quando elas acontecem, são filtradas por uma vasta capacidade de compreensão emocional das personagens.
É o que acontece quando Anne, jornalista de classe média, namorada de Victor, filósofo em crise existencial, conhece Vijay, indiano novo rico, que tenta impressionar David, pai de Patrick:
Um homenzinho indiano sendo menosprezado por monstros do privilégio inglês normalmente teria desencadeado em Anne toda a força da lealdade para com os oprimidos, mas dessa vez o sentimento foi exterminado pelo enorme desejo de Vijay de ser ele próprio um monstro do privilégio inglês. “Não suporto ir a Calcutá”, disse com uma risadinha, “as pessoas, minha querida, e o barulho”. Ele fez uma pausa para que todos apreciassem essa observação indiferente feita por um soldado inglês no Somme.
Certa atmosfera
A força da prosa está na naturalidade com que expressa os extremos de diversão e tédio que envolvem o joguete social da aristocracia britânica — que, diga-se, nada tem a ver com ter ou não ter dinheiro; a maior questão é se o dinheiro que alguém já teve é velho ou novo.
Nicholas Pratt, a melhor e mais cruel criação de St. Aubyn, é o porta-voz desses temas em vários momentos dos três livros. Ao contrário da maioria das outras personagens, ele foi inteiramente inventado por St. Aubyn, que via nele uma “manifestação de certa atmosfera” que estava ao seu redor quando mais jovem. Lembrando determinada “festa semiboêmia em Chelsea oferecida por um peruano ambicioso”,
Nicholas e os outros picos sociais que o anfitrião tentava escalar se mantiveram juntos numa das extremidades da sala falando mal do alpinista enquanto ele se esforçava para escalá-los, todo solícito. Quando já não tinham nada melhor para fazer, permitiram que ele os subornasse com sua hospitalidade, ficando subentendido que ele seria arrastado por uma avalanche de insultos se alguma vez os tratasse com familiaridade numa festa oferecida por pessoas que realmente importavam.
Às vezes eram os grandes festivais de privilégios, outras vezes a bajulação e a inveja dos outros que confirmavam a sensação de estar no topo. Às vezes era a sedução de uma garota bonita que cumpria essa importante tarefa, outras vezes até abotoaduras sofisticadas faziam esse papel.
Em diversos momentos, é difícil não sentir qualquer deleite, ou até compaixão, pela mesquinharia e fugacidade que fazem parte desse universo. Como quando Nicholas toma um voo com a mulher, Bridget, loira ignorante e adúltera, e ele se dá conta de que não conseguiria manter uma conversa amena sobre qualquer assunto que dependesse de um mínimo conhecimento histórico.
Ela provavelmente achava que Argélia era um estilista italiano. Sentiu uma nostalgia familiar por uma mulher bem informada de trinta e poucos anos que já tivesse lido história em Oxford; o fato de já ter se divorciado de duas delas pouco importou para o seu entusiasmo momentâneo. A carne delas podia até pender mais flácida no osso, mas a lembrança de uma conversa inteligente o inebriava como o cheiro de comida suculenta flutuando até uma cela esquecida de prisão.
Por fim, ele lamenta: “por que o centro do seu desejo estava sempre num lugar recém-abandonado?” Como uma boa “manifestação de certa atmosfera”, não era apenas Nicholas que nutria esse sentimento; quase todos aqueles homens e mulheres que frequentavam os mesmos ambientes sociais aspiravam algo que não sabiam o que era. E se chegassem perto disso, renegariam na mesma velocidade.
Mais do que uma fuga
Quando Alguma esperança foi lançado, em 1994, Edward St. Aubyn acreditava ter finalizado a história de Patrick Melrose em um ciclo completo — da infância traumática e da juventude desnorteada à idade adulta desesperançosa. A história com o pai estava contada. Uma década depois, no entanto, o escritor resgataria seu alter ego para falar sobre a relação com a mãe já moribunda.
A tônica de O leite da mãe e Por Fim (a serem lançados pela Companhia das Letras) está na inabilidade com que a matriarca encarou a culpa por ser rica — sendo ludibriada até a morte por lunáticos new age e outros charlatães. Também aí surgiram os primeiros reconhecimentos literários a St. Aubyn. Com o primeiro volume dos Romances de Patrick Melrose, acumulou apenas algumas resenhas na imprensa inglesa e um punhado de caras feias de amigos de seu pai; com a segunda fase da série, foi um dos finalistas do Man Booker Prize e conseguiu atravessar as fronteiras do Reino Unido.
Mas, mesmo nos três primeiros livros, Edward St. Aubyn atingiu resultados notáveis. Demonstrou grande habilidade ao esculpir descrições precisas e unir um elenco de personagens memoráveis — ao mesmo tempo abjetos e cativantes. Como em Powell e Waugh, soube usar o humor de uma maneira sagaz e elegante.
Assim, a experiência abaladora de um abuso infantil acaba tornando-se secundária. Ela está lá, é claro, mas outras qualidades do texto se sobrepõem. Ao final da leitura dos Romances de Patrick Melrose, lemos mais do que o testemunho de um autor que criou arte para tentar fugir de um trauma; presenciamos um brilhante escritor criando literatura de grande valor.