Não foi a primeira vez que escutei a expressão “Ledo Ivo engano”. Um trocadilho com o poeta alagoano, esgotando em uma brincadeira todo um percurso permeado de mais de 20 livros e que no ano que vem completa seis décadas de poesia, a contar a estréia As imaginações. Lêdo Ivo é um elo entre Manuel Bandeira e toda uma geração antológica com os novos nomes. Sobreviveu aos gênios de sua época e às promessas que não se cumpriram. Em outro país, não seria motivo de piada, e sim alvo de homenagens. O gracejo prova como esquecemos rápido o legado literário, o quanto não se poupa crueldade para se parecer inteligente. Ocorrem vários enganos. O primeiro se refere a pensar que a obra de Lêdo Ivo está pronta e qualquer livro seu é uma reedição. Talvez pelo fato de ele já constar nos manuais, enciclopédias e compêndios literários ao lado de mortos ilustres. O segundo equívoco é misturar opiniões políticas e passagens cronológicas com o que verdadeiramente acontece no mundo dos versos.
A biografia do poeta é sua obra, o resto são juros da eternidade e ninho de cobras. Assim como um livro pode falir de vez uma existência, pode mudar uma poética pregressa, instaurar um inédito patamar de perplexidade e ressuscitar qualquer autor de velhos erros. Fico constrangido ao decretar “conheço um poeta”. Não me conheço direito para emitir uma sentença. O último engodo público é a formação de bandos, ser mais amigo dos escritores do que de seus livros. Fazer da cumplicidade um parecer estético. Envolver-se em grupos ou panelas como um ato de proteção, nunca discordando da opinião dominante da classe que se faz parte. Em vez de somar virtudes, herdam-se inimigos.
O rumor da noite (Nova Fronteira.), publicado em 2000 e um dos três finalistas do Jabuti/2001, passou silencioso, se levarmos em consideração sua grandeza como a arte de mentir as verdades. Poesia não é peça para ocultistas, começa em música e encorpa-se em reflexão. Reivindica a clareza da mão. Como conceituava Robert Frost, “é uma lógica para ser sentida, não para ser prevista como uma profecia”. Essa obra de Lêdo Ivo está impregnada de uma surpresa sem a qual não existe suspense. O escritor fica conhecendo o que falou depois do leitor, descobrindo que sabia o que pensava não saber. A intuição é somente materializada em experiência dentro da linguagem.
À flor do osso — Disposto em três seções (A porta, Noturno romano e O vento), o livro apresenta uma regularidade rara, com versos se ajudando a soarem diferentes uns dos outros e ao mesmo tempo unificando o discurso na elaboração do tecido noturno. Há o vigor da contemplação, observações pensativas e metáforas (“tambor tardio” e “ave vista da escotilha”) que acentuam a lentidão e o distanciamento. Lêdo Ivo ainda tem a vantagem de sempre revisar a tradição, abrindo ou escondendo o jogo. O caminho branco, o mais forte sopro do conjunto, por exemplo, é algo como o Cântico negro, do português José Régio, em tom afirmativo.
O caminho branco
Lêdo Ivo
Vou por um caminho branco.
Viajo sem levar nada.
Minhas mãos estão vazias.
Minha boca está calada.
Vou só com o meu silêncio
e a minha madrugada.
Não escuto, entre os barrancos,
a voz do galo estridente
que, na treva do terreiro,
anuncia as alvoradas.
Nem mesmo escuto minha alma:
não sei se ela vai dormindo
ou me acompanha acordada,
se ela é vento ou se ela é cinza
ou nuvem rubra raiante
no dia que se levanta
como vela desdobrada
em nave que corta as vagas.
Não sei nem mesmo se é alma
ou apenas sal de lágrimas.
Vou por um caminho branco
que parece a Via Láctea.
Só sei que vou tão sozinho
que nem sequer me acompanho,
como se eu fosse um caminho
pisado por um vulto estranho.
Não sei se é dia ou se é noite
o que surge à minha frente,
se é fantasma do passado
ou vivente do presente.
Não sei se é a torrente clara
da água que corre entre pedras
ou se um gavião me espreita
oculto no nevoeiro,
espantalho prometido
ao meu dia derradeiro.
Atravessando barrancos
e plantações de tomate
e ouvindo o canto escarlate
de airosos galos polacos,
vou por um caminho branco:
brancura de bruma e prata.
Entre tufos de carqueja
há constelações de orvalho
e um clarão do meio-dia
cega a minha madrugada.
Vou como vim, sem saber
a razão da travessia.
Nem sequer levo na boca
o gosto de água salgada
que relembra a minha infância
feita de mar e de mangue.
Nem sequer levo nos olhos
— nos meus olhos de meninos —
a mancha rubra de sangue
deixada pelo assassino
que vi certa madrugada.
Vou por um caminho branco
e nada levo nem tenho:
nem ninho de passarinho
nem fogo santo de lenho.
Só vou levando o meu nada.
Fui tudo quanto juntei
para oferecer a Deus
nesta branca madrugada.
Cântico negro
José Régio
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés
sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Os títulos dos dois poemas gritam as distinções. Enquanto José Régio faz um poema parado, destila a desobediência, a contrariedade, não querendo ir, Lêdo Ivo expõe uma resignada sabedoria, uma disciplinada confiança, movimentando o trajeto, concordando e cumprindo as perdas. Ambos transcorrem na madrugada, com a interlocução surda, afirmando não ter nada, não levar nada. Régio volta-se contra o consenso, revolta-se com o excesso de sinais e conselhos, armando-se da ironia e do sarcasmo. Lêdo não se opõe a nada, redunda um despojamento de quem conhece o suficiente. O português reivindica o desconhecido. O brasileiro percorre sua escolha e traça o inventário das sobras.
Na tessitura de Lêdo Ivo, encontra-se uma poesia funda. Não um lirismo à flor da pele, mas uma voz à flor do osso. Injusto reduzi-lo a um mero formalista. Ele executa a forma como escalas a serviço da música dramática, de um concerto de câmara. Seja por sonetos, seja por tercetos, descreve os símbolos da noite em pleno dia. A vida é convidada à mesa para ajustar as contas. Os poemas confirmam a suspeita de que, ao avançar, a memória recua e falha. “De tanto existir já não sei quem sou.” O mundo de um homem passa a ser o que ele desistiu. “Só guardo o que perdi.” O corpo protesta diante da morte, questionando Deus com a sinceridade amadurecida em Perguntar não ofende: “Por que um Deus mudo/ responde por tudo?” A transcendência do escritor não o permite à religião. Um ateu que prefere conviver com a claridade do escuro. “Vai-te embora, eternidade,/ vai-te embora enquanto é tempo.” Nem o fim nem o começo, o que importa é durar na conversação dos limites, confundir o presente carnal com os fantasmas. Da mesma forma em que o poeta afirma “só os mortos estão livres da morte”, é capaz de enunciar em seguida “volto ao cemitério de Maceió/ onde meus mortos jamais terminam de morrer”. Isso mostra que a contradição na poesia não é negativa, entretanto um modo de abrir ainda mais a imagem, proporcionando versões da defesa e da acusação, mudando de lado para se ter a feição completa do objeto. A história das metáforas não é a história da consciência. Não pede organização e coerência. Quanto maior o atrito, maior será o potencial da percepção e a capacidade de argumentação da sensibilidade.
Em O rumor da noite, animais marítimos (peixe, caranguejo) e interiores (galo, cavalo) impulsionam a conjugação simultânea de tempos e paisagens, entrelaçando a infância rural à urbe de turistas e banqueiros. Lêdo Ivo monta seu presépio pessoal, demarcando sua vista ao instinto de sobreviver. Em seu vocabulário, o olhar é o mais agudo dos sentidos, significa participar, testemunhar, permitir-se a dor de ser o outro. “Sou tudo o que vive além de mim.” Aborda o selvagem domesticado, o humano inumano, não conseguindo distinguir “o que une ou separa/ relincho ou palavra”. Em um dos poemas, revela o término do maniqueísmo, a simbiose entre o terrível e o belo, com os urubus manchando a enseada. Se a criação teve um dia de descanso e trégua, a destruição não dá folga. Ninguém está livre das dúvidas: “Este é um tempo de aflição e não de aplausos./ devemos aprender a ter medo mesmo aos domingos”.