Lamento grego

Os piores dias de minha vida foram todos, de Evandro Affonso Ferreira, fecha a fúnebre Trilogia do desespero. Diferente de Sófocles, Evandro criou uma tragédia sem personagens melodramáticos, sem diálogos estonteantes, sem surpresas no enredo.
Evandro Affonso Ferreira. Foto: Divulgação.
07/04/2015

“Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando”, diz Clov em Fim de partida, de Samuel Beckett. Essa poderia ser uma frase da protagonista do mais recente romance de Evandro Affonso Ferreira, Os piores dias de minha vida foram todos. Trata-se de uma mulher moribunda que divaga, da cama da UTI, pelas ruas de São Paulo, na tentativa de prorrogar seu encontro com a morte. Mas ela não está mais entre os vivos, já que não interage com eles, eles não a veem e não a ouvem. Narra, de forma fragmentada, episódios de sua vida, onde a impotência e revolta são as constantes. Tudo é derrota: a mãe complacente com o pai libidinoso, a avó que falece nos braços da neta, o grande e único amigo, “escritor extinto”, morto. É a ele que se erguem as melhores frases do livro: “Nossa amizade era versão mais bem-acabada do parentesco”. As 128 páginas do romance poderiam ser ouvidas como um lamento por essa perda, em uma voz que remete às tragédias gregas.

O parentesco com a literatura grega é parte da forma e do conteúdo. A história de Antígona é narrada aos poucos. Diferente de Sófocles, Evandro criou uma tragédia sem personagens melodramáticos, sem diálogos estonteantes, sem surpresas no enredo. Assim como no Olimpo, tudo é destino, portanto tudo é inevitável. O leitor sabe, desde o começo, como tudo vai acabar: como ele mesmo, com a morte. Mas não deixa de temê-la.

Antígona anda pelas ruas desesperada para enterrar o cadáver do irmão, guiada pela tradição segundo a qual os mortos devem ter um local de repouso, seus restos respeitados, e não destroçados pelos cães e urubus. Igualmente nossa protagonista, ao invocar com obsessão a memória de seu “amigo escritor extinto”, constrói para ele um monumento de memória, para impedir que seus ossos poéticos sejam espalhados e esquecidos. Assim como a protagonista e Antígona, o próprio autor muitas vezes, ao falar sobre esse livro durante sua preparação, disse que o dedicaria a dois grandes amigos que o incentivaram desde o começo da carreira, o temido crítico Alcir Pécora e o falecido poeta e editor José Paulo Paes (1926-1998), queridíssimo de um sem-número de escritores contemporâneos. A protagonista de Os piores dias… conhece intimamente as saudades que Evandro tem de José Paulo Paes. “Quando eu soube da sua morte, sensação nítida de que todas as palavras haviam caído em desuso”.

O coro grego também tem voz em São Paulo. Nos bancos das praças, nos pontos de ônibus, na faixa de pedestres, todos falam, e essa mulher silenciosa tudo escuta, percebe a solidão e o fracasso, relativiza sua própria dor.

Senhora aqui perto do ponto de ônibus diz para alguém ao lado dela que está muito triste: filho não conseguiu indulto natalino; rosto macilento pressupõe perdas maiores que a minha.

Voz assexuada
Evandro Affonso Ferreira fez seu nome literário desde seu primeiro romance, onde a linguagem era a grande estrela, a começar pelo título: Grogotó!, mas provou que sua erudição autodidata forjou massa filosófica muito além da sonoridade. Nos três últimos romances, a Trilogia do desespero, como às vezes ele próprio a define, Evandro usou a mesma estrutura, um protagonista à beira da morte ou loucura — indistinguíveis — que erra pelas ruas ou pela memória à busca de mil e uma noites antes do fim. A maior tristeza da vida não é a morte, mas a perda do ser amado: no primeiro, a mãe; no segundo, a mulher; no terceiro, o amigo. Neste último, a protagonista é uma mulher, mas o amor pelo amigo lembra a verdadeira amizade muito mais frequente entre dois homens. A voz dessa protagonista é assexuada ou masculina, como nas referências a revistas pornográficas e prostíbulos. Aí, talvez, o que se ouve é um deslize da voz do autor para dentro do romance.

A proximidade entre a experiência de vida do autor, conforme ele mesmo a conta, e a alma dolorida dos personagens também são sua grande força. Com sua forma única, nesses anos entre Minha mãe se matou sem dizer adeus (2011) e Os piores dias… (2014), Evandro dá voz, idioma e sotaque à solidão, finitude, medo. Enquanto planta o leitor no presente com celular, ônibus leito, miniconto, e na geografia concreta de pontos quase turísticos da cidade, transporta-o por um trajeto atemporal que vai do sublime ao arruinado, começando pela Catedral da Sé, para a rua São Bento, Cemitério da Consolação, Viaduto do Chá, Teatro Municipal, terminando no Instituto de Infectologia. Parte da catedral — onde o crente pode sentir a presença divina, à súplica a São Bento — santificado por ter vencido as ciladas armadas pelo Diabo, ao cemitério — que apesar de representar o irremediável, é o da consolação, para o Viaduto do Chá e Teatro Municipal — símbolos da pujança de São Paulo, de volta onde tudo começou, a cama da UTI do Instituto de Infectologia — de onde só se sai em pensamento.

Nos três romances o homem viaja rumo ao inferno de si. Evoca Dante? Sim, mas também o labirinto borgeano, os clássicos épicos, ou a espera beckettiana. E não por acaso: Evandro Affonso Ferreira conversa de igual para igual com seus mestres de outros séculos, e deixa pistas de suas conversas em cada linha de seus romances. Com sua linguagem do abandono, deixa o leitor ao sabor da intertextualidade erudita sem concessões, às vezes até excessiva, mas nunca detém o fluxo narrativo. Entra-se só, sem aviso, sem pausa para respiração (o romance é um parágrafo de 128 páginas), para ouvir-se o fluxo de consciência desta mulher em sua queda in totum.

As frases se alternam, ora curtas e abruptas, ora longas e fluidas, com muitas repetições. Economiza artigos e adjetivos: “Senhora desceu agora do ônibus desfechando insultos fazendo alusões injuriosas ofensivas ao motorista que segundo a própria ignorou campainha: não parou no ponto anterior. Desavenças miúdas do cotidiano”. Semeia palavras colecionadas, graves ironias, “manifestantes protestando contra o policiamento da cidade; numa das faixas, leio estupidificada: A SEGURANÇA É UMA FARÇA. A educação também”. As imagens sensoriais são potentes: “Do outro lado na calçada cover do rei do rock saracoteia e canta e requebra e rebola e braceja e sacode os ombros, figura clownesca. Amigo escritor extinto estivesse aqui diria, galhofeiro: Elvis não morreu, infelizmente”. Impossível escapar à tentação da leitura em voz alta, e em meio à tragédia, ao riso. Quanto mais se lê, mais se mergulha nesse corpo decadente, arrastado pelas palavras. O leitor passa do exterior seguro, ascético, ao interior podre e aterrador. “Acho que essa multidão inumerável de vírus está turvando meu juízo; pesadelo sintomático aquele da noite passada, verdadeira Visão de Tungdal. Ah, esses vírus malditos com seu cortejo de atrocidades. Besta de mil cabeças. Fantasmas antropofágicos. Sou uma pessoa interiormente devastada.”

A narradora sabe qual será seu fim. Anuncia e teme a morte desde o começo do romance. Não abre mão da esperança de salvação. Aí reside a beleza poética da obra: enquanto persegue a memória do amigo, deixa de se alimentar, de se tratar, canaliza toda sua energia na esperança. A única função “realista” da personagem é delinear a decomposição do amor à vida mediante a experiência da perda.

Sobre Beckett, afirmou-se o que poderia também se dizer de Evandro: “ele traz ao romance a profunda consciência do absurdo da existência humana — nossa desesperada busca por significado, nosso isolamento individual, e a distância entre nossos desejos e a linguagem em que os expressamos”. Mas segundo F. Scott Fitzgerald, é preciso ser capaz de enxergar que não há esperança, e mesmo assim ter a determinação de fazer com que haja. Evandro Affonso Ferreira é fiel a essa determinação também. Só a literatura salva.

Os piores dias de minha vida foram todos

Evandro Affonso Ferreira
Record
128 págs.
Evandro Affonso Ferreira
Nasceu em Araxá (MG), em 1945, e radicou-se em São Paulo há mais de 40 anos. Surgiu na literatura em 2000, apresentado por José Paulo Paes. Participou de uma coletânea de contos em Portugal (Editora Cotovia) ao lado de Osman Lins, Dalton Trevisan, Samuel Rawet, Hilda Hilst e Sérgio Sant’Anna, organizada por Alcir Pécora. É autor, entre outros, de Grogotó!, Araã!, Minha mãe se matou sem dizer adeus.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho