Laços de sangue

Narrado de forma original, "Doze dias", romance de Tiago Feijó, disseca relação entre pai e filho
Tiago Feijó, autor de “Doze dias”
01/05/2023

Em uma terça-feira ordinária, uma chamada telefônica incomum: o pai adoentado, presença rara nos últimos anos, pede ajuda ao filho para levá-lo ao hospital. Raul não tem se dedicado a construir grandes pontes afetivas com Antônio, seu único filho que vive em São Paulo. Está armada a situação ficcional que irá, ao longo de doze dias, esmiuçar os silêncios e segredos que permeiam essa relação atravessada de vazios. A 200 quilômetros de São Paulo está Lorena, cidade de origem do protagonista e onde vive a figura paterna. O calor de dezembro sufoca, e nele Antônio se lança à tarefa de amparar aquele que nunca se preocupou em nutrir esse vínculo para além de um telefonema anual de aniversário. Entre a ligação em busca de socorro e o contato intermitente com o pai, o espaço de uma vida.

No hospital público, UTIs lotadas, macas ocupadas, companheiros de quarto indesejados e um rosário de gestos miúdos a escancarar a falta de intimidade entre dois homens que mal se conhecem. Um precisa de amparo; o outro percebe em si pouco espaço para mobilizar alguma ternura a essas alturas do campeonato.

Doze dias, de Tiago Feijó, estreou no ano passado para os leitores brasileiros, mas carrega uma trajetória que começa em 2021, quando recebeu o prêmio Manuel Teixeira Gomes, concedido pela cidade de Portimão, na região portuguesa do Algarve. A premiação, aberta a escritores de países lusófonos, contou com um júri cujo parecer final destacou a “estrutura narrativa complexa e original”.

Montagem não linear
O romance se sustenta sobre uma montagem não linear do tempo, trazendo capítulos que embaralham a cronologia dos fatos e alteram nossa percepção dos acontecimentos. Aí temos o pulo do gato: o tempo surge não somente como tema (os anos de sumiço paterno, os dias cronometrados pelo calendário, as minguadas horas passadas juntos), mas também como procedimento ficcional. Nesse sentido, se constata ainda e mais uma vez o quanto essa categoria é elástica, subjetiva e relacional — um minuto pode durar uma eternidade, se expandir, tornar-se intolerável quando partilhamos a intimidade não desejada das carnes e vísceras paternas adoecidas.

Por outro lado, quinze anos de ausência passam de modo veloz, na mesmice de dias que se singularizam apenas pelo telefonema burocrático ao filho: uma conversa que parece sempre a mesma, igual à do ano anterior e semelhante à do ano que vem. O tempo fica aprisionado na palavra que nada significa, mas explode em mil sentidos quando nos obriga a encarar, enfim, a finitude: “este dia que se alargará em muitos, um dia encravado numa dúzia de dias, doze noites transcorridas como que dentro de um único e enormíssimo dia”, sustenta o narrador.

Para amplificar essa sensação, Feijó constrói uma atmosfera asfixiante, de diminutos quartos de hospital onde sufocam os personagens nos muitos momentos de espera. Como complemento, a descrição da casa vazia em que vive o pai no presente da narrativa: os poucos objetos existentes são a evidência dessa vida que foi pouco a pouco murchando, até sobrar quase nada. Quase nenhum amor, quase nenhuma presença, quase nenhuma saúde. Desse modo, os doze dias da relação de um pai e um filho são a metonímia do vínculo que para o segundo se afigura “um buraco vazio de afeto”.

Nessa narrativa que gira em torno das coisas da família, o autor se coloca como leitor privilegiado de uma linhagem que inclui obras como Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, e Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, não por acaso romances fundamentais da nossa literatura que tematizam amores sufocantes e a ruína de um clã. Mas se nessas histórias predominam afetos vividos entre membros de uma mesma família, aqui temos uma contenção dos gestos, construídos sobre muitas ausências. Com uma escrita marcada pelo lirismo, Feijó repercute suas preferências literárias: em entrevistas, reitera a predileção por escritores cuja veia lírica é evidente, como Bandeira e o próprio Nassar. O trato cuidadoso e elegante da linguagem por vezes se ressente de uma pitada de ironia e escorrega em alguns arroubos sentimentais, como na descrição de seu Francisco, lavrador que por momentos divide o quarto de hospital com Raul.

Em Doze dias, a cólera se ergue sobre a figura paterna, complexificando a construção do personagem e fazendo dele eixo central do romance. Caracterizado pela desmesura, dedicado ao mundo das paixões e dos excessos, esse pai é alguém que falha reiteradas vezes e tem consciência da inabilidade para cumprir o papel de bom marido e genitor dedicado. “Eu, o pai ausente, eu, o pai desnaturado, eu, o pai nenhum, jamais o deixaria com sede ou com fome, porque, afinal de contas, eu sou um homem, um homem de verdade, um homem inteiro, repleto de defeitos, repleto de virtudes”. Um pai-fantasma que em tudo se contrapõe ao filho ordeiro, “calado, privado de palavras”.

Confuso legado
Parecidos fisicamente, eles são estranhos cuja relação carece de profundidade — aos olhos do herdeiro desse confuso legado, o pai é desprovido da capacidade de amar. E o autor explora de forma rica o tema das famílias arruinadas e casas assassinadas: pais e filhos não se entendem, irmãos rivalizam pelo amor materno, amigas escolhem quebrar pactos de afeto para vivenciar uma relação proibida. O passo entre certo e errado é curto, pontos de vista raramente coincidem, relações pessoais se nutrem de expectativas frustradas. Cabe aos (supostos) adultos encarar de frente a tarefa de demolir paredes simbólicas e construir laços possíveis. Nada muito fácil.

O desenlace aponta para a dura contradição humana que sustenta muitos de nossos vínculos. Na tentativa de compreensão desse outro, tão estranho quanto familiar, é necessário às vezes colocar-se em sua pele, sua cama, seu pijama surrado. Regar as plantas de seu jardim, dar sentido a velhas fotografias justapostas. Fazer um novo desenho das imagens antigas e gastas, das relações intoxicadas de rancor. Bater à porta da casa paterna, respirar fundo e entrar, dando a chance para alguma brecha mínima da vida que ainda pulsa.

Doze dias
Tiago Feijó
Penalux
185 págs.
Tiago Feijó
Nasceu em Fortaleza (CE), em 1983, e cresceu em Guaratinguetá (SP). Professor e escritor, é formado em Letras Clássicas pela Unesp e tem publicados o volume de contos Insolitudes (2015) e o romance Diário da casa arruinada (2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho