As vanguardas artísticas sempre foram alvo de discussão e debate tanto por parte dos autores quanto dos críticos (e, por que não dizer, leitores?). Sempre há quem diga, por exemplo, que o século 20 foi a pá de cal para a arena da experimentação das artes. Para o historiador Eric Hobsbawn, em Era dos extremos, o fim das vanguardas se deu justamente no período entre guerras, época que, em tese, já teria proporcionado à humanidade toda a sorte de quebra dos paradigmas na pintura e na música, por exemplo. Mas, e o que dizer da literatura? Decerto que o leitor mais apressado haverá de afirmar que, depois do irlandês James Joyce, com sua narrativa hermética e inovadora, e o francês Marcel Proust, com a corrida atrás da memória involuntária, de fato, a natureza experimental na literatura se esgotou. As aparências, contudo, nem sempre representam a realidade. Na década de 60, surgiu um grupo — que mais tarde se configuraria em movimento literário — para ser a exceção que comprova a regra. O OuLiPo (Ouvroir de la Littérature Potentielle) foi responsável pela extensão das ferramentas de criação na literatura. Para ser mais objetivo, este laboratório literário fazia experiências como a de contar uma mesma história de 99 maneiras diferentes, o que foi feito por Raymond Quenau em Exercícios de estilo, ou de criar um manual para o cotidiano, como Vida: modo de usar, de Georges Pecec (1936-1982). Este último, aliás, tem agora um de seus títulos lançados em português. A obra em questão é A coleção particular.
No livro, Perec constrói uma narrativa à sua maneira: isto é, propõe ao leitor uma sucessão de jogos e labirintos, dentro dos quais a sensação não é a de se estar necessariamente perdido, mas dentro de uma rede com inúmeras variáveis, cada qual oferecendo tantas outras, sem que haja um limite aparente. Lê-se, assim, a história de um quadro. Mas não qualquer quadro. É a representação da coleção do self made man Hermman Raffke, um “emergente” cujo objetivo, em dado momento da vida, passa a ser a coleção de quadros (no Brasil, creio que tivemos algo parecido com Assis Chateaubriand, muito embora a coleção pertença, hoje, ao Masp). Desse modo, ele sai arrematando obras de arte em leilões pela Europa e pelos Estados Unidos. Para tanto, como ele não possui qualquer instrução estética, o colecionador conta com o auxílio de historiadores e críticos de arte que lhe aconselham sobre quais quadros deve adquirir. Contudo, a obra mais instigante de sua pinacoteca é uma que lhe é feita sob encomenda pelo artista Heinrich Kurz. É “A coleção particular”. Nesse quadro, estão expostas todas as pinturas de sua coleção. O trabalho, em perspectiva, não somente apresenta ao espectador um amplo panorama da coleção de Raffke, mas também cria uma sensação instigante, a tal ponto que potencializa e deturpa o interesse pela obra. De repente, todos querem vê-la, como se pudessem absorver cada vez mais de seus elementos pictóricos. O curioso é que essa exasperação ocorre justamente quando há uma espécie de mega-exposição, da qual Kurz participa.
Tamanha atração seduz todos aqueles envolvidos na mostra. Isso porque, conforme ressalta o narrador, é a primeira vez que “A coleção particular” é exposta em público. Assim, em determinado momento, o inevitável acontece e o quadro é danificado por um visitante mais exaltado, fazendo, então, com que o quadro fosse retirado da exposição. A história, que é relativamente curta, teria acabado por aí se dois eventos distintos e ao mesmo tempo complementares não tivessem ocorrido. O primeiro se deve à interpretação: pouco depois de ter sido retirado, o quadro é tema de um ensaio assinado por “um certo Lester Nowak”. Com efeito, é ele quem consegue sintetizar e definir, com palavras, o fascínio que a obra gera no espectador. Segundo Nowak, “toda obra é o espelho de uma outra”. Em profundidade, isso significa dizer que, não obstante ao que dizem acerca da originalidade, um certo número de quadros só assume seu real significado se existe referência a outros, correlatos. Nesse sentido, o autor do estudo aponta para uma nova perspectiva das artes, aquela em que a regra será a repetição viciosa dos seus modelos anteriores. Para o crítico, isso fica mais do que claro no quadro do artista alemão, posto que há nele uma imagem pormenorizada de todo o acervo do proprietário, que, por sinal, também está presente na representação, como se ele também fosse uma peça de sua coleção.
O outro acontecimento-chave se dá um ano após a exposição, em 1914, quando Raffke é encontrado morto. O corpo, então, é embalsamado e colocado na mesma posição que estava por ocasião de “A coleção particular”. Ou seja, é como se em morte o proprietário da coleção particular quisesse, ele mesmo, construir sua obra-prima, uma cópia de seu quadro predileto, aquele que fazia referências a todas as demais telas que possuía. A imagem se constrói na cabeça do leitor: “A coleção particular”, que faz referência a outros quadros, passa, depois da morte do seu dono, a ser objeto de referência para o dono, que faz a mimese da tela. Para isso, repare o leitor, a morte foi fundamental. Pois Raffke jamais conseguiria ser o duplo de seu quadro se estivesse vivo.
É exatamente nesse ponto que a interpretação de Lester Nowak e a imitação de Hermman Raffke se encontram. De certa forma, os dois, cada um à sua maneira, inferem que é a morte a partícula elementar, a peça-chave para o entendimento da obra. De um lado, Nowak indica que a repetição viciosa significa a imagem da morte da arte, uma vez que, conforme se vê no quadro, a criação está condicionada à repetição infinita de seus modelos. Na outra ponta, Hermman Raffke endossa essa teoria, já que, ao morrer, faz ele mesmo uma cópia da obra que mais admira. Georges Perec articula a história de modo a levar o leitor a refletir. Não há como ler esta breve narrativa sem refletir sobre como ela é estabelecida. Do mesmo modo como é impossível não analisar a crítica de arte que o autor faz questão de assinalar.
É como se um ponto dependesse do outro e ambos os elementos trocassem de lugar. Pois a reflexão artística absolutamente depende da estrutura da obra, que se assemelha a um jogo de espelhos (a obra, que representa outras telas, que faz referência a tantos outros quadros). Enquanto isso, o próprio estilo se aprimora na descrição e no detalhamento que faz de cada imagem, como se forjasse um catálogo interpretativo da obra de arte.
Escritores, para o senso comum, são indisciplinados e mais afeitos à inspiração para a construção de histórias como A coleção particular. Georges Perec, novamente, mostra-se como o avesso a essa má concepção. Em sua atividade como escritor, preferiu, antes, impor uma série de restrições ao seu processo criativo. No entanto, esse método tinha como objetivo expandir, ao máximo, sua capacidade inventiva, pois era como se o improviso fosse disciplinado, de maneira a ser não menos espontâneo, porém mais preciso, certeiro. Em A coleção partícula, isso se evidencia pelo mote da história: um quadro que representa outros quadros. É a partir disso que o autor extrapola as potencialidades da narrativa, utilizando uma história simples, mas que induz ao questionamento. A propósito, o fato de ser relativamente curta, assim como o conto que também consta nesta edição (A viagem de inverno), não a torna de fácil construção. Pelo contrário. O tamanho do texto, nesse caso, é mais um detalhe que maximiza a criação literária.
Embora as possibilidades se apresentem quase que infinitas, no posfácio, o crítico literário Adriano Schwartz traduz alguns desses enigmas, como as referências ao já citado Vida: modo de usar, pois, ao longo do livro, Perec dá algumas pistas para o leitor decifrar o caminho do labirinto de espelhos que é a sua literatura. Afinal, se as vanguardas de fato acabaram, Georges Perec comprova, com seus livros, que o laboratório para a experimentação possui variáveis que ainda não foram testadas.