O mundo é feito de camadas sobrepostas a outras tantas camadas e, mesmo que a informação esteja à vista, ela muita vez passa como se estivesse invisível ou, pelo menos, inalcançável, quando não levanta dúvidas a respeito da veracidade. Por exemplo, se digo que existe um escritor chamado Jacobo Bergareche, nascido em Londres, e que ele escreveu um livro com o título Los dias perfectos, que se passa em Austin e que parte de pesquisas a respeito de William Faulkner, cujas informações pessoais estão depositadas em documentos no Centro Harry Ransom (com um acervo de quarenta e três milhões de documentos, de cair o queixo), a única coisa que um leitor mais informado vai identificar de imediato nessa barafunda de informações é o nome do escritor norte-americano William Faulkner, e talvez se sinta compelido a recorrer a meios digitais para checar o restante dos dados fornecidos. Três ou quatro cliques mais tarde, le voilà, tudo confere.
Talvez tenha sido a preocupação com diferentes níveis de verificabilidade, ou mesmo de desconfiança em relação ao estado do mundo, que estimularam a escritora mexicana Margo Glantz a fazer um compilado de notícias, apertá-las todas uma ao lado da outra com parafusos peculiares, o ponto e vírgula, nesse livro chamado E por olhar tudo, nada via, em que as informações parecem ser tão fantásticas que poderiam ter vindo da imaginação de um escritor e no entanto, para possível desconsolo de muitos, são verídicas, foram colhidas de jornais, em boa parte.
O título, porque é bom começar de algum lugar e título pode ser excelente pedida, por que não?, ele sim, veio mesmo do mundo literário. Trata-se de um verso de Sor Juana Inés de la Cruz, poeta barroca que está entre os interesses e especialidades de Glantz. Depois de se colocar — e, claro, também ao leitor — uma pergunta singela, qual seja, “ao ler as notícias, como decidir o que é mais importante?”, a escritora começa um inventário do absurdo humano em múltiplas dimensões, variáveis e meridianos.
Por exemplo, “que uns cientistas tenham conseguido criar orelhas para cinco crianças que sofriam de uma má-formação hereditária”, ou “que se queira mudar o final da ópera Carmen de Bizet porque não é politicamente correto que se assassine uma mulher”. E sim, é ela mesma quem retira os itálicos, por exemplo, no nome da ópera de Bizet, que normalmente se conhece como Carmen. Talvez para intensificar o processo de uniformização noticiosa, vai saber.
Turbilhão
Pode ser informação minúscula ou assassinato em massa, tudo parece ser submetido a um mesmo processamento: postas lado a lado, as notícias soam de repente todas muito irrelevantes, no fim das contas. Então, para que servem manchetes, letras garrafais, fotografias ampliadas além do necessário que os jornais usam e, sobretudo, abusam, nas páginas cotidianas?
Pois é, nova rodada de discussões entre jornalistas e editores talvez se faça necessária, para repensar critérios e efeitos que se buscam e melhores mecanismos para se alcançá-los, num mundo cada vez mais mergulhado em camadas sobrepostas, verdade ao lado de mentiras, tudo submetido ao mesmo moedor de carne. Dessa vez, no entanto, tomando um exemplar do livro de Glantz como bússola para pautar a reunião.
A própria autora não se furta de ponderar “que quando as notícias são lidas uma após a outra parece que tudo tem a mesma importância”, ou “que haja uma senadora na Austrália que se pronunciou em uma sessão do Parlamento australiano enquanto dava de mamar a seu bebê”. Veja, aqui não funciona como ela gostaria, porque a discrepância é tão gritante que não tem como não causar espécie. Mas do modo como ela articula a narrativa, espreme as informações entre pontos e vírgulas, e multiplica-as numa quantidade avassaladora num só texto sem pausa, gigante, incômodo, cheio de pressão por todo lado, o mundo fica mesmo esquisito, de novo e ainda mais estranho do que normalmente é — e é muito, não se pode esquecer. Curioso é que a gente precise ser lembrada disso.
Margo Glantz estica a corda, tensiona ao máximo e convida o leitor a se inquietar com ela.
É literatura?
Aliás, diga-se de passagem, a máquina de moer carne que é o livro de Margo Glantz também se beneficia de discutir figuras de linguagem, sobretudo o modo como a Wikipédia entende ou ajuda a desentender conceitos como metáfora, hipérbato, hipálage ou outros tantos. Digo máquina de moer carne com a melhor das intenções, afinal o livro dela, praticamente inqualificável (mas agora vou começar a me desmentir), o que faz é esmagar as notícias e com isso chamar brutalmente a atenção para o poder terrível da anestesia a que somos submetidos praticamente o tempo todo. Acorde, leitor, ela (o texto dela) nos dá um safanão. Um safanão potente, diga-se de passagem.
É literatura? É jornalismo? É ensaio? Resta pensar no ponto e na posição que sejam adequados para essa compilação. Talvez as pessoas atentas tenham observado que os bibliotecários lutam cada vez com maior dificuldade para colocar rótulos identificadores em obras que costumam frequentar bibliotecas. A tal ficha técnica largou as formas tradicionais — romance, novela, conto, poesia — porque são categorias cada vez menos aplicáveis. É o caso do livro de Margo Glantz. Em geral, a saída tem sido usar (e, de novo, abusar) de um genérico “ficção” seguido do país de origem ou da língua adotada pelo escritor (no caso de Kafka, ficção alemã, em vez de tcheca, ou seja, língua de adoção, em vez de lugar de nascimento; e evidente que os exemplos poderiam se multiplicar).
Resolve em parte. Serve para casos que vão tentando forçar cada vez mais os limites da literatura, movimento que vem desde a década de sessenta do século vinte, quando surgiu, na França, por exemplo, o OuLiPo, ou Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como Oficina de Literatura Potencial, um grupo que se estipulava restrições para escrever livros. Por exemplo, não usar a letra e (ou alguma outra), um recurso a que chamaram lipograma. Ou usar o mecanismo Bola de Neve: fazer um poema que tem, no primeiro verso, uma palavra; no segundo verso, duas; no terceiro, três; e assim sucessivamente.
Era um grupo animado, do qual fizeram parte Georges Perec (que Margo Glantz cita um bocado, diga-se de passagem), Raymond Queneau, Italo Calvino, Marcel Bénabou, entre outros. Ora, o que essas pessoas conseguem é testar limites, talvez a mais destacada das funções da literatura. Algo parecido com o que faz a norte-americana Lydia Davis, da qual Margo Glantz se aproxima e se afasta, na medida em que no projeto das duas existe um princípio de concisão, mas em Glantz ele também se opera por justaposição: aforismos que partem da realidade e que são unidades em si, mas precisam estar ao lado daqueles outros selecionados para um efeito global. Não à toa, esta cita aquela, ao dizer “que Lydia Davis começasse a escrever textos muito breves com frases muito curtas depois de ter traduzido Proust”.
Convite à inquietação
Margo Glantz estica a corda, tensiona ao máximo e convida o leitor a se inquietar com ela. Pode ser uma informação que estava esquecida num canto do caderno de cultura, por exemplo, “que Egon Schiele, o grande pintor austríaco, tenha morrido muito jovem, na epidemia da gripe espanhola que assolou o mundo quando a primeira Guerra Mundial acabou”. E imediatamente o leitor é conduzido a pensar que ela talvez esteja a tecer um comentário lateral à nova epidemia, de coronavírus, que assolou a face do planeta. Mas o fato é que não, a pesquisa da escritora foi interrompida em janeiro de 2018, antes mesmo de a pandemia do corona se desencadear, dois anos prévios ao confronto do planeta com nova crise de mortandade em escala.
Margo Glantz também pode falar “que Brecht decretasse que é preciso examinar o habitual e não aceitar sem discutir os costumes herdados e que Perec tenha inventado um gênero literário chamado infraordinário”. Olha aí, não falei que ela tem particular apreço por Perec? Ou ainda, “que na China se proíba escutar O messias de Handel em público”. Ora, por que será, qual o propósito disso, e quem foi o maluco que decretou esse tipo de proibição, baseado em quê? Não, de fato, o mundo está louco, insano, fora dos eixos, no entanto a gente nem liga mais, continua-se como se nada.
É curioso que a indignação dela seja apenas na escolha do fato e num modo aparentemente distanciado, objetivo, ou, para qualificar como se deve, jornalístico. Mas nada mais longe do que a argumentação boçal dos jornalistas quando falam em objetividade. Ela toma mesmo posição, adota pontos de vista muito sutis mas não menos contundentes, tem reclamações a fazer.
Eu adotaria o livro nas cadeiras de jornalismo de todas as universidades do planeta, caso tivesse poder para isso. Porque é também um livro dotado de elegância a toda prova, por exemplo, quando diz da maneira mais econômica possível “que a hipótese de que uma inteligência artificial seja capaz de melhorar a si mesma até se tornar independente do controle humano se chame Singularidade tecnológica”. Por fim, o meu favorito, “que um menino do quarto ano do fundamental escreva: Poesia é um ovo com um cavalo dentro”. Em instâncias microscópicas, cada anotação dessa pode, sim, ser chamada de aforismo, mas construído a partir de observação tão refinada do real e da loucura da vida, um aforismo em relação direta com os dados do que se convencionou chamar de real.
Que outros livros de Margo Glantz possam ser traduzidos, sobretudo se mantiverem o mesmo nível elevado que este em questão. Um deles, por nada mais, mereceria o esforço só por conta do título, Síndrome de naufrágios. Mas enquanto o restante da obra de Glantz não chega, os leitores têm muito o que fazer com esse E por olhar tudo, nada via. É uma espiral que aponta para temas os mais diversos em múltiplos pontos de conexão, a sugerir discussões, abordagens, possibilidades. Trata-se do labirinto do mundo, ou melhor, do mais bem-feito mapa possível para ajudar a penetrá-lo.