Labirinto de significados

Guia para o leitor enfrentar a dura travessia de "Grande sertão: veredas", do mineiro João Guimarães Rosa, um dos maiores clássicos nacionais
Ilustração: Fabio Miraglia
01/08/2021

Quase à beira do Velho Chico, ao fim da vida o velho fazendeiro usa o tempo que lhe resta no “range rede”. Pensando no passado, tenta descobrir o significado do que viveu, entender a perda do seu “amor de ouro”. Há três perguntas que ele gostaria de responder: o Diabo existe? Eu fiz um pacto com o Diabo? O pacto foi a causa da morte de Diadorim? De repente, em uma segunda-feira, aparece um doutor interessado nas coisas do sertão: na natureza, nos costumes, nas histórias de jagunços… É a este homem da cidade que Riobaldo, durante três dias, irá contar sua história. Mas a narrativa não é linear, como explicaremos mais à frente, mas labiríntica.

O primeiro passo
Um passo de cada vez, nessa travessia é preciso ter calma. Como diz Riobaldo: “mire veja”, ou seja: não basta olhar, é preciso perceber, entender, meditar. Comecemos pelo título.

Por que Grande sertão: veredas se chama assim? A primeira pista está nos dois pontos. Deve ser lido de forma pausada, feito samba, com breque. Grande sertão:veredas. Vale também como conjunção adversativa: o sertão é grande, porém existem as veredas.

Como o próprio Riobaldo explica: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente”. Ou seja, ele afirma que não é uma narrativa de fatos e sim uma reflexão, um conjunto de indagações. E, para confirmar essa hipótese, ele diz logo no parágrafo seguinte de forma ainda mais explícita:

Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.

O Grande sertão é o mistério da vida, da natureza, dos homens. A palavra “sertão” vem de “desertão”. O grande deserto da falta de sentido que, feito o Liso do Sussuarão, todos nós precisamos ter muita coragem para atravessar. O que alguns poucos sabem disso são apenas veredinhas, caminhos, que em Minas são também cursos d’água. Isto é, representam a oposição entre a aridez da nossa ignorância e a vida e a alegria que a água (e o conhecimento) nos trazem.

Por isso: Grande sertão: veredas.

Os três sertões
Deve-se ter em mente é que Grande sertão: veredas não é um romance realista, tampouco regionalista. Há claros traços de realismo mágico: um deserto intransponível que em outro momento se torna um território hospitaleiro (Liso do Sussuarão); lugares que deixam de existir, se é que existiram (Veredas Mortas); um pequeno córrego (“corguinho”) que fala com Riobaldo e depois lhe pede a bênção; homens que parecem viver em um tempo passado (catrumanos) e por aí vai.

Rosa não está querendo descrever ou retratar a realidade. Embora o romance se passe no sertão mineiro, não é sobre o sertão mineiro. A boa arte literária, ensina Antonio Candido, consiste em deformar a realidade de modo a expressar melhor uma característica da mesma. Rosa conhecia a região, sua geografia, sua fauna e flora, seus homens e costumes. E isso transparece no livro de forma exuberante: dá para vivenciar o sertão, sentir seu cheiro, ouvir o canto dos pássaros, mergulhar nas águas dos rios. Mas essa realidade é apenas o pano de fundo, a história que ele quer contar é outra.

A palavra ficção vem de fictio, o que é criado, inventado. Não significa algo falso. O próprio Rosa responde a esta questão do falso e verdadeiro em uma linda passagem da novela A hora e vez de Augusto Matraga: “Direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor”.

Qualquer um que tenha lido e minimamente entendido o Grande sertão: veredas, vê que ele se passa no sertão geográfico, mas que seu tema é o sertão existencial. O próprio Guimarães Rosa explica, ponto a ponto, como estão estruturados seus livros:

Como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los:

a) Cenário e realidade sertaneja: 1 ponto
b) Enredo: 2 pontos
c) Poesia: 3 pontos
d) Valor metafísico-religioso: 4 pontos

O filósofo paraense Benedito Nunes aprofunda esta reflexão. Ele diz existirem três sertões na obra. O primeiro sertão é o de Minas propriamente dito: “O sertanejo e o sertão, a linguagem e as relações humanas e sociais do sertão”. Nesse sertão-sertão a questão central é a sobrevivência.

Mas há um segundo sertão: “O da aventura humana, sob os grandes paradigmas da viagem e do combate”. Nesse sertão, que todos nós trilhamos, a grande questão é a da existência. Aqui entra o bordão de Riobaldo, “viver é negócio muito perigoso”, e também a ideia de travessia, dos percursos que somos obrigados ou escolhemos fazer.

Por fim, há um terceiro sertão: “O do destino metafísico e religioso, sob o paradigma da escolha entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Demônio”. Aqui a questão fundamental é a transcendência, aquilo que está além do que supõe a nossa vã filosofia ou sociologia.

É claro que esses três planos estão entrelaçados, misturados, articulados. Em certa altura o próprio Riobaldo, conversando com o “doutor”, admite que o que está contando é confuso e “entrançado”. É disso que vamos tratar agora, tentando ajudar você a superar o principal obstáculo à leitura do livro.

Pântano narrativo
Nas duas primeiras vezes em que tentei ler o livro, parei por volta da página 80. Posteriormente, em minhas oficinas de leitura da obra pude atestar que esta era uma experiência comum: muitas pessoas diziam que haviam parado na página 50 ou 70. Resolvi investigar e descobri a existência do que chamei de “pântano narrativo”. Grosso modo, dependendo da edição, as primeiras 100 páginas do livro não respeitam nenhuma ordem cronológica. Muito pelo contrário, acontecimentos muito posteriores aparecem sem nenhum aviso ou explicação, embolando totalmente a narrativa e dificultando a compreensão. Apenas por volta da metade do livro é que esses “nós” serão desatados.

A explicação para essa confusão proposital é dupla. A memória de Riobaldo, como qualquer memória, funciona à base da associação de ideias, não está pautada pela ordem cronológica. Além disso, Guimarães Rosa queria leitores que prestassem atenção às questões presentes no livro, ele dizia não gostar de leitores correndo atrás da história. De fato, olhado sem a preocupação em entender os personagens e os episódios, o “pântano narrativo” apresenta todas as questões principais do livro: Deus, o Diabo, o Sertão, o Acaso, o Amor, a Guerra, a Travessia, o Mal… Tanto que quase ao fim dessa parte Riobaldo comenta: “De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo”.

A boa notícia é que depois atravessar o “pântano narrativo” a história é contada de forma bem mais linear e, portanto, mais fácil de ler. Agora passemos a outras dicas de leitura.

Dicas para a travessia
Basta querer ler. Pode ler sem medo, é um livro delicioso, prazeroso feito café no fogão a lenha. Não é difícil e sim rico e complexo, o que é uma outra coisa. É a estrutura, e não o conteúdo, que representa a maior dificuldade. Mas leia em voz alta para dar vida ao texto, o que facilitará sua compreensão. É o próprio Rosa que diz isso:

Quando um leitor desentender um trecho, deve relê-lo em voz alta, obedecendo rigorosamente à pontuação. Não procure correr atrás do enredo. Cada palavra perdida faz falta e pode afetar a compreensão global do texto.

O livro não é dividido em capítulos, não tem sequer um espaçamento maior entre um parágrafo e outro, vem na forma de um bloco único. Mas você vai notar que, como se fosse um aedo homérico, Rosa costurou uma série de episódios, que podem até ser percebidos como histórias dentro da história.

Que nem um sertanejo, não tenha pressa. A história é muito interessante, sem dúvida, mas é a maneira de contá-la e o que se aprende com ela que importam. Antes de se preocupar com a trama, preste atenção no conteúdo e na forma. Verá que por detrás de alguns “causos” e provérbios que parecem sertanejos há temas filosóficos e metafísicos.

Por exemplo: em um dos primeiros parágrafos Riobaldo alerta que às vezes a mandioca boa vira mandioca brava, venenosa, e vice-versa; a mandioca má torna-se boa. Logo depois ele cita dois causos que exemplificam isso: um homem mau que torna-se bom e um casal bom que toma gosto em castigar o filho. O Bem e o Mal são intercambiáveis, não estão totalmente separados, o que coloca uma questão filosófica.

A máxima para ler o livro é a fala de Riobaldo: “Tudo é e não é”. Cada história, cada nome, cada ação ou discurso, tem sempre mais de um significado.

Leia sem parar. Não vá ao dicionário neste primeiro momento. Muita gente faz pose de especialista e repete a besteira de que Rosa inventou uma nova língua. A linguagem de Rosa é própria, misturando o modo de falar sertanejo com palavras do português arcaico, termos de origem tupi, estrangeirismos adaptados, enfim: é original. Rosa queria usar a língua portuguesa falada no Brasil em todas as suas possibilidades. Quem prestar atenção perceberá que há poucos neologismos. O que é marcante é o uso imaginativo e sensível de palavras muito simples: “O espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom”.

Claro que é impossível não se identificar ao menos um pouquinho (ou muito) com Riobaldo, o narrador. Mas é necessário também desconfiar dele… Com muita habilidade, Rosa faz com que possamos pesar a veracidade ou não de certas afirmativas. Mais eu não digo.

Amor e poder
De uma maneira muito simples, podemos dividir o livro em duas partes: a parte solar, ou do amor, e a parte sombria, do poder. A primeira parte é toda marcada pela descoberta do amor pelo jagunço Diadorim, de início na figura do Menino com quem Riobaldo faz sua primeira travessia. Amanhece a sua “aurora” de desejo e descobre que “carece de ter coragem”. É um amor proibido, objeto de um desejo vivenciado com angústia por alguém que se define como um “homem por mulheres”. É um período de aprendizagem, em que Diadorim ensina Riobaldo a olhar e ver: a beleza da natureza, a delicadeza terna e amorosa do manuelzinho-da-croa que vive sempre em casal dando “beijos de biquinquim”.

O auge desta primeira parte, centrada no amor dos dois, dá-se no episódio do Guaravacã do Guaicuí, local paradisíaco em que eles permanecem junto com alguns poucos companheiros por dois meses. É ali que Riobaldo descobre de forma definitiva seu amor por Diadorim:

O sentir tinha estado sempre em mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. Era e era.

O fim dessa lua de mel sem o mel propriamente dito vai se dar de maneira violenta, trágica, com o anúncio do assassinato de Joca Ramiro, de forma vil e traiçoeira. Aqui começa a segunda parte, voltada para a busca do poder. É o momento sombrio de Riobaldo. Filho bastardo de um fazendeiro riquíssimo, menino pobre criado pela mãe, Bigrí, a certo ponto ele percebe ser “um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão”.

Durante a guerra havia conhecido Otacília, uma moça angelical e futura herdeira de uma rica fazenda. O próprio Riobaldo certifica-se que ela não tem irmãs nem irmãos. Contra sua vontade, continua apaixonado por Diadorim, mas busca outro caminho. É aí que entra a tentativa de pacto com o Diabo, depois da qual Riobaldo acaba tomando a chefia de Zé Bebelo. Enquanto chefe, Riobaldo é um homem marcado pela hybris. Tomado pela cegueira do poder, assistirá da janela do sobrado à morte do seu amor. Depois disso, desperta, como ele mesmo admite: “Desapoderei”.

Riobaldo vai passar toda a sua vida tentando entender o que havia lhe acontecido, como havia sido capaz de trocar o amor pelo poder. Um amigo psicanalista, Alex Rocha, me enviou a seguinte frase de Jung: “Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro”.

É dessa grande perda que nasce a narrativa de Riobaldo.

A experiência do infinito
O livro se abre com uma palavra que significa ninharia, mas que aponta para a noção do nada, do início, do vazio: nonada (no-nada). Termina com o símbolo do infinito. O nada é o que existe antes da palavra, da criação, da ficção. Esta é a porta para o infinito de possibilidades que chamamos de literatura.

Parece um livro, mas é sobretudo uma experiência iniciática, a entrada em um labirinto de sentidos cuja travessia exige paciência e atenção. Há recompensas a cada passo: as belezas do caminho, as muitas veredas de significado. A certa altura, você perceberá que deixou de ler o livro. Pois chegou a hora de deixar o livro te ler, trazendo à tona sentimentos e reflexões. Você terá se transformado. Agora você será um rosiano, uma rosiana.

Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa
Companhia de Bolso
583 págs.
João Guimarães Rosa
Nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908. Apesar de ter se formado em medicina, seguiu carreira de diplomata e dedicou-se às letras. Sagarana (1946), Primeiras estórias (1962) e Grande sertão: veredas (1956) são alguns de seus livros publicados. Morreu em 1967.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

Rascunho