De repente, uma batida na porta. Você abre, mas em vez de alguém entrar, é você que atravessa uma fresta e se depara com o mundo bizarro e íntimo de Etgar Keret.
Apontado como o mestre da ficção curta produzida em Israel, Keret escreve no idioma informal da rua e cria personagens estranhos, ainda assim familiares. Cada conto seu é uma casa estreita, cheia de portas e passagens, na qual o leitor pode subir as paredes, mas de onde só sairá pela mão segura do autor.
O mundo de dilemas éticos impossíveis da ficção de Keret gera muito mais perguntas do que respostas. Lógica, só a do sonho. Para o autor, observa Steve Almond, do New York Times, o impulso criativo não reside na devoção consciente à armadura clássica da ficção (personagem, enredo, tema), e sim na lealdade à instigante anarquia do subconsciente. Em um dos melhores contos, Abrindo o zíper, uma mulher chamada Ella encontra um zíper debaixo da língua de seu namorado quando ele está dormindo. Ao descer o zíper, a personagem vê o moço abrir-se, revelando, dentro, Jurgen, seu antigo namorado. Ao perceber um zíper debaixo de sua própria língua, Ella é tomada por um terror íntimo: como será, por dentro? Se isso desperta o Gregor Samsa em nós, o leitor que se prepare: há peixes que viram homens e esquecem que são peixes, há até uma hemorroida que dá conselhos diabólicos a um homem bom, ganhando tanto poder que acaba se tornando maior do que ele. Kafka vive.
No conto que dá nome à coletânea, mergulha-se no dilema de um escritor de nome Keret, forçado a contar uma história — mas “uma história de verdade”, não a realidade. Qualquer um teria dificuldade para escapar da realidade, mesmo ameaçado de morte. A história que o personagem conta para salvar sua vida começa, enfim, com a frase “De repente, uma batida na porta”. Não por acaso, também no conto, e no livro em si, “sem uma batida na porta, não há história”. É a primeira porta que se abre na viagem para um outro mundo, e uma imagem recorrente na obra de Keret, que pode ter origem em Lewis Carroll ou no sofrimento de seu pai, que para sobreviver ao Holocausto passou 400 dias escondido em um buraco estreito. A necessidade de uma rota de fuga sopra fortes ventos em seus enredos.
Gavetas interiores
É frequente, quando se fala de Etgar Keret, israelense nascido em 1967, apontar os conflitos no Oriente Médio como tema central e o pensamento mágico como porta de escape a uma dura realidade, o que o planta firmemente na tradição literária judaica de Isaac Bashevis Singer ou Moacyr Scliar. Nancy Rozenchan, que enfrentou o desafio de tradução dessa obra — complexa justamente por sua coloquialidade em um idioma que ficou dormente por dois mil anos —, considera que “textos atuais da literatura israelense […] tentam reformular os limites borrados e imprecisos da identidade israelense”. Mas há um perigo nessa generalização, apontado por Mia Couto: a obra do autor que vive em uma zona de conflito é sempre interpretada à luz do conflito.
Nestes 35 contos, o Keret não se limita a temas que o rodeiam. Escreve próximo à própria experiência, que é a marca da literatura contemporânea. No Brasil, as obras de Michel Laub, Cristovão Tezza, Luiz Ruffato, entre muitos outros, demonstram uma preocupação em iluminar nossas sombras internas, sejam elas o preconceito, a arrogância ou a indiferença, exatamente como a “sensação de voltar-se para dentro” apontada por Rozenchan na obra dos escritores jovens israelenses. Ao contrário da Alice de Carroll, que é uma criança que teme crescer, os personagens em De repente, uma batida na porta são adultos (ou crianças) que temem sua própria pequenez. Em Keret, a sátira pode ser local, mas a ironia é global e atemporal. Onde outros grandes autores enxergam violência, identidade e território como questões nacionais, este as enxerga como questões existenciais.
Na linguagem direta, com muita gíria e de simplicidade construída, o esforço é por manter o fluxo narrativo, não por adornar o caminho. O humor nos tropeços dos personagens, uma de suas marcas, permite ao leitor encarar o que se esconde em suas gavetas interiores. Não há linguagem figurada, mas há voos líricos para bem longe do humor. Em Trabalho de equipe, um menino de quatro anos pede ao pai que bata na avó materna, porque ela o tortura. O pai quer muito prometer que o fará, mas sabe que não pode. E sofre em dobro. Assim como em uma crônica da revista Tablet, onde o autor relata um comovente diálogo que teve, pouco tempo após perder seu pai, com seu filho de sete anos, para explicar-lhe por que os pais devem proteger os filhos. Ao final, o menino o leva às lágrimas, perguntando quem irá cuidar de Keret, agora que seu pai faleceu. A ficção deste autor é produto de uma oficina onde a dor é matéria-prima.
Ambiguidade
E ele conhece o poder da ficção. Em Terra da mentira, um mentiroso sem escrúpulos inventa um cachorro paraplégico para justificar seu atraso no trabalho. Mais tarde, um sonho o leva a outro mundo, onde começa a encontrar os personagens de suas mentiras: lá está o cachorro paraplégico. Um pesadelo labiríntico, digno de uma conversa entre Kafka e Borges. Trata-se da responsabilidade sobre as mentiras que contamos, da dificuldade de viver sem contá-las ou o dilema do ficcionista: escrever para sentir-se vivo, sim, mas aquilo que se cria toma vida própria. Keret afirma: “O fato de que você inventa algo não o isenta da responsabilidade […] Em uma história, você é Deus. Se seu protagonista fracassou é porque você o fez fracassar”. A mentira, uma fratura na realidade, localizada pelo radar milimétrico de Keret, conduz a essa sequência de gavetas interiores, sucessivamente mais escuras e claustrofóbicas. Apesar da vida curta, seus personagens têm alma densa.
“A única maneira de viver com o otimismo no dia a dia sabendo que o futuro é pessimista, é preservar a ambiguidade”, confessa. Nela surge a política em constante estado de ebulição, a questão da identidade israelense, discutida dos pontos de ônibus ao Parlamento. Seus personagens são separados por pequenas alterações de percurso, mais do que por sua essência. Em Manhã saudável, um homem abandonado pela namorada é confundido com várias outras pessoas; em Mystique, dois desconhecidos, com histórias iguais, sentam-se lado a lado em um avião. Nesses contos, pessoas vivem vidas paralelas e um tanto idênticas.
A ambiguidade também é temporal. Em Pudim, Avishai é obrigado a correr para a casa dos pais e reviver uma tarde da infância. Estranha, mas imagina que esteja sonhando. Só que o sonho não acaba. O personagem caiu para dentro de si pela fresta da realidade, e não saiu mais. Talvez esteja a traduzir-se para si próprio, assim como Keret considera a tradução um diálogo, e se dispõe a reescrever ou eliminar trechos que não façam sentido em outro idioma. Resta saber se o leitor estará disposto a fazer isso consigo mesmo após viajar para dentro de si.