Kafkiano até na morte

Novas obras mostram como Franz Kafka metamorfoseou sua vida em literatura e, depois de morto, tornou-se parte de um processo tão estranho quanto a ficção
Ilustração: Kafka por Fabio Miraglia
29/10/2021

Duas publicações recentes sugerem que o tcheco Franz Kafka (1883-1924) não escapou da ironia que costumava permear sua obra nem depois de morto. Em seus Diários — 1909-1923, publicados integralmente no Brasil a partir das edições críticas alemãs e em boa tradução de Sergio Tellaroli, vê-se como o autor de clássicos da literatura fez de sua própria vida uma espécie de projeto kafkiano. Já em O último processo de Kafka, cujo título aponta para o teor algo absurdo — por mais que real, ou justamente por isso — da narrativa, são levantadas inúmeras questões pertinentes a respeito de quem pertence a obra de um autor que, antes de tudo, queria que seu trabalho tivesse sido queimado.

Os Diários chegam em uma edição comercial, para o leitor não especializado, e assim se justifica a decisão correta de organizar o texto cronologicamente — e não segundo a ordem de escrita dos próprios cadernos. É uma pena que a edição da Todavia, com excelentes notas das edições alemãs, não tenha incluído um estudo de maior fôlego para apresentar o material em sua diversidade e a partir das questões pungentes que ele lança sobre os estudos literários de hoje.

Em todo caso, a estranheza do texto kafkiano, exposto de maneira direta, sem os cortes e edições do amigo Max Brod, é um banquete para o leitor contemporâneo. Considerados alguns dos diários mais importantes do século 20, não se tratam aqui apenas de observações e reflexões sobre acontecimentos do cotidiano (o que já ofereceria uma visão rica sobre o início do século na Europa e seu pujante contexto cultural, mas também sobre a preparação lenta de seus horrores, que Kafka não viveu, mas previu), senão de toda uma visão de mundo transformada em escrita. Melhor, de um processo complexo em que a vida foi se metamorfoseando aos poucos em literatura.

História e ficção
Escritos entre 1909 e 1923, os cadernos deveriam servir no começo apenas às anotações diárias, mas a máquina de escrita kafkiana foi aos poucos ampliando essa restrição. Comparável no Brasil talvez aos Diários íntimos de Lima Barreto, em que a atormentada visão do autor oferece uma perspectiva literária sobre seu mundo vivido (inclusive nos momentos de sonho e loucura), em Kafka o olhar objetivo e antipsicológico, a espiral de autossuspeição que estrutura o movimento do texto com o qual o leitor de Kafka está acostumado na sua obra estritamente ficcional (se é que se pode falar assim), se lança sobre a vida histórica. Se como afirma o crítico Günter Anders, o que espanta na obra de Kafka é que as coisas mais insanas acontecem ninguém se espanta, nos Diários o ritmo não é muito diferente. Eis a célebre reação do autor diante do prenúncio da Primeira Guerra Mundial: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. — À tarde, natação”.

O fato de que pelo menos três boas pesquisas de doutorado, com posições diversas sobre a relação entre escrita e ficção (como as de Laís Oliveira, Gabriel Guimarães e Sâmella Russo), tenham se dedicado aos Diários de Kafka no Brasil nos últimos cinco anos aponta para a relevância desse texto, sobretudo levando-se conta as difíceis e móveis fronteiras entre escrita biográfica e escrita ficcional, relato e literatura e, por outro lado, a maneira com que a máquina de escrita kafkiana abole essas diferentes em uma tentativa de transformar esse mundo em algo expresso via literatura. A escrita literária (entendida aqui em sentido mais amplo do que o meramente ficcional) se torna mecanismo não apenas de representação, mas de produção de mundo.

Muitos críticos apontam com justiça para o fato de que os diários serviram para Kafka como campo de experimentação, de oficina literária ou mesmo de espaço de “aquecimento” para a escrita ficcional. A leitura da obranão deixa dúvidas sobre isso: relatos cotidianos se misturam com crítica literária e crítica de teatro, com reflexões estéticas, com memórias e considerações sobre o judaísmo e sua representação nas artes, com a descrição de sonhos (alguns dos quais apresentam, de maneira prototípica, algumas imagens retomadas posteriormente na ficção).

Laboratório de criação
Os primeiros registros já mostram o caráter de experimentação que distinguem esses diários daqueles de Thomas Mann ou de Goethe, por exemplo, em que os diferentes modos de escrita estão claramente separados. Nos de Kafka, uma anotação sobre uma reunião de trabalho compartilha páginas com um mesmo experimento que é reescrito três ou quatro vezes. Se o elemento biográfico está presente, por outro lado, a busca constantemente por uma forma de escrita justa mostra a preocupação eminentemente literária do escritor.

Não se trata apenas de um diário confessional, para o qual uma primeira tentativa de desabafo bastaria, mas de uma pesquisa formal, de uma oficina em que as experiências do eu também servem de material. Não estamos longe aqui dos debates contemporâneos sobre a autoficção e a transformação de si em motivo literário, como o necessário embaralhamento das fronteiras ocidentais entre fato e ficção.

Um tipo de cirurgião alucinado, é como se Kafka praticasse a escrita primeiro em si mesmo. Neles, suas vivências e percepções são afiadas. O estilo característico de desespero frio que perpassa suas narrativas encontra nos melhores momentos dos Diários sua gênese. Kafka não é K. ou Gregor Samsa, mas é ele mesmo um personagem (ou protagonista, como dirá Laís Oliveira) por meio de experimentações e práticas de escrita, para que os outros surjam depois, em uma narrativa mais madura.

Fronteiras borradas
Nas anotações de Kafka se dissolvem, de certa forma, o paradoxo original que envolve a publicação de qualquer diário — gênero pensado mais para a escrita do que para a leitura e, portanto, raramente dedicado a um leitor externo. No caso desses Diários, a palavra-chave também deve ser desconfiança.

Assim como na célebre Carta ao pai — que Kafka depois descreveu depois como uma “carta de advogado”, ou seja, menos a expressão direta de sentimentos do que, também, uma construção literária sofisticada direcionada a certos fins —, os Diários não querem tanto retratar, mas fazer dançar, na vertiginosa desconfiança sobre o sentido em que o texto kafkiano coloca o leitor.

O fato de que esses diários tenham sido efetivamente emprestados para a leitura da amante Milena Jesenská, por exemplo, confirma essa hipótese. Isso vale menos para responder uma questão desimportante (o que de fato aconteceu e o que está sendo “ficionalizado”) do que para mostrar como Kafka foi aos poucos vivendo literariamente, como sua experiência histórica passa necessariamente pela sua escrita.

Em outro paradoxo performático, o tema central dos Diários, repetido do começo ao fim, talvez seja a impossibilidade da escrita. Escreve-se sobre não se poder mais escrever. E isso foi a vida de Kafka, escrever sobre a vida, mesmo quando não se podia escrever. Mesmo, sobretudo, quando não se podia viver.

Ilustração: Kafka por Fabio Miraglia

Ironia kafkiana
O último processo de Kafka, traduzido em diversas línguas e publicado no Brasil neste ano, mostra como o autor tcheco parece ter sido refém de sua forma de ver o mundo mesmo depois de morto. A obra dá detalhes e contexto histórico a um dos processos judiciais mais importantes e sintomáticos das últimas décadas, no qual a complexa disputa legal por alguns dos manuscritos de Kafka mistura questões profundas e extrajudiciais: a legitimidade de se vender grandes obras de arte e as possibilidades de seu acesso pelo público geral, o pertencimento “nacional” de um autor, a disputa discreta entre estados-nação por “ativos” culturais, a destruição de milhões de vidas, obras e documentos pelo genocídio fascista e a tentativa de proteção deste legado, a relação ambivalente de uma geração de judeus assimilados como Franz Kafka e Max Brod em relação ao sionismo cultural e posteriormente ao sionismo político, por fim, os limites difíceis de distinção entre proteção e cooptação de obras artísticas para fins políticos.

A ironia kafkiana do processo — assim como sua crueldade para os “personagens” envolvidos — não passa despercebida. Que o espólio de Kafka terminasse em um processo longo, de ampla cobertura midiática, envolvendo instituições de diversos países, herdeiros diretos e indiretos, é uma ironia já presente de certa forma e no pedido final do autor para que sua obra fosse queimada.

A relevância do livro de Balint está sobretudo na reconstrução de um momento histórico crucial de seus personagens. A Shoa e a imigração de intelectuais judeus para a Palestina é retratada aqui, para além do drama histórico e humano, também em relação às perdas e sacrifícios de conservação cultural da produção judaica na Europa no começo do século.

Max Brod
Para entender como os últimos originais de Kafka foram parar em um pequeno apartamento de Tel Aviv, precisamos entender melhor a figura de Max Brod, celebrado como aquele que não apenas não cumpriu o desejo final de Kafka, mas que foi o mais importante divulgador de sua obra e primeiro a reconhecer sua grandeza. Se a interpretação literária do próprio Brod acerca do significado dos textos de Kafka foi motivo de crítica já desde seu surgimento (como na contraleitura fundamental, por exemplo, de Walter Benjamin), sua importância como agitador cultural e agente literário é fundamental e o livro faz justiça à sua contribuição inestimável para a literatura moderna. Sua fuga de uma Praga prestes a ser ocupada por nazistas é heroica e o relato de Balint, de que Brod optou por deixar as próprias malas para serem enviadas posteriormente, para poder levar os manuscritos de Kafka, dá a medida emocionante da importância concedida pelo amigo ao trabalho de Kafka, na época ainda muito distante do reconhecimento mundial posterior.

Se em alguns momentos parece haver certo exagero sobre a importância de Brod na escrita de Kafka (quase como se, sem seu apoio, Kafka não teria escrito, o que a leitura dos Diários definitivamente desautoriza), o livro em geral faz justiça à importância de Brod sobretudo depois da morte de Kafka.

E se, apesar do gênio criativo de Kafka, sua vida como judeu assimilado em um centro na periferia da Europa Central em plena industrialização certamente contribui para dar alcance à recepção de sua obra, o mesmo se pode dizer sobre a história de sua publicação. Uma obra escrita na atribulada Praga (parte do Império Austro-Húngaro, depois da Tchecoslováquia, depois de uma ocupação nazista, depois de ocupação soviética…) e que emigrou à força para Tel Aviv (na Palestina e depois Israel) e que tem como seu protetor e protagonista Max Brod, escritor e intelectual judeu, carrega em si grande parte da história europeia do século.

Vitória de Israel
Fica para o leitor o julgamento sobre a justiça da vitória do estado israelense contra Eva Hoffe, herdeira do espólio, segundo o desejo de Brod. Balint tenta mais relatar do que tomar partido, ouvindo as diversas partes e explicando as minúcias históricas e jurídicas para o público leigo — do desejo de destruição de Kafka, passando pela oportuna traição de Brod e a declaração explícita de que os originais deveriam servir como um tipo de herança para sua “amiga” até chegar à herança desta para suas filhas.

Talvez pelo fato do próprio Balint não ser crítico literário, mas jornalista, há ainda uma outra voz interessada — sem dúvida, a mais importante — que está ausente do livro: a da própria obra kafkiana. Para além das pessoas envolvidas, como é que o próprio texto de Kafka, motivo principal aliás por todo o interesse e frisson em torno dos originais, lida com a questão do pertencimento?

Bem, como Judith Butler demonstrou em um artigo intitulado A quem pertence Kafka, texto que deveria ser lido como complemento fundamental ao livro de Balint, o texto não quer pertencer. Diante da pergunta: a que povo, a que país e a quais culturas pertencem os judeus assimilados da Europa, Butler — ela também uma autora judia da diáspora — oferece como resposta o texto kafkiano e sua desconfiança em relação a qualquer pertencimento (nacional, linguístico ou literário), sua movimentação constante e a incapturabilidade de sua “poética da não-chegada”. O último processo de Kafka se converte então em um monumento irônico à obra, prova de nossa falta de compreensão, décadas depois de sua crítica, sobre as ciladas do nacionalismo e do identitarismo.

Diários — 1909-1923
Franz Kafka
Trad.: Sergio Tellaroli
Todavia
576 págs.
O último processo de Kafka
Benjamin Balint
Trad.: Rodrigo Breunig
Arquipélago
272 págs.
A metamorfose
Franz Kafka
Trad.: Bruno Gambarotto
Grua
96 págs.
Franz Kafka
Nasceu em Praga, em 1883. É autor dos clássicos A metamorfose (1915), O processo (1925) e O castelo (1926), entre outros livros. Morreu em 1924, no sanatório de Kierling, em decorrência da tuberculose.
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

Rascunho