Para inaugurar esta coluna compensa falar de um escritor atemporal, um artista extremamente lúcido com sua tarefa, notável conhecedor das palavras, cientista da prosa mais criativa. Franz Kafka nascido em 3 de julho de 1883 em Praga, filho de um vendedor judeu Hermann Kafka, o qual o inspirou fazer exorcizar seus demônios no livro “Carta ao Pai”, escrito em 1919. O livro é um desabafo de um filho de classe média judia, sofrido e isolado por sua condição de judeu, escolhe como ícone seu pai, figura patriarcal autoritária, insensível, “…um gigante fascinante e ao mesmo tempo desprezível…” .
Contudo não vincula sua obra segundo sua história, ele era judeu, mas a palavra judeu, não figura em seus escritos que são intemporais, seu estilo é sem marcas ou referências, é um mágico artesão das palavras, consegue narrar pesadelos sórdidos em um estilo límpido. Kafka dizia que o advogado é o pior homem do mundo, ele era advogado, trabalhava em uma semi-estatal de seguros, e segundo seus colegas de trabalho era um funcionário modelo e um homem agradável e bem humorado, boa companhia para os amigos, apesar do mito de tristeza e tédio profissional. Na obra “O Processo”, o leitor observa a visão de funcionário público, a frieza, as injustiças sociais, a burocracia, a Lei. É um trabalho raro com a palavra, contemporâneo, presente, questionador existencial, filosófico.
1883-1924. Estas datas delimitam a vida de Kafka. Importantes acontecimentos históricos marcaram este período, a Primeira Guerra, os anos de fome, a revolução russa, o tratado de Versailles que engendrou a Segunda Guerra, uma série de fatos decisivos no curso da história. No entanto, o compromisso de Kafka era com a forma de como se diz as coisas, seu destino consiste em transformar os acontecimentos e as agonias em fábulas. No conto, O abutre — “…o abutre escutara tranqüilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Enlevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardos, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.” —, percebe-se o tom de fábula que é característica da fantástica e realista obra de Kafka.
Jorge Luis Borges define a escrita kafkaniana como uma exceção a tão comum regra na história da literatura, “é um escritor que podemos ler atemporalmente, vive e sofre as conseqüências da Primeira Guerra Mundial, mas nada disso se reflete em sua obra, seu trabalho poderia ser definido como uma parábola ou uma série de parábolas, cujo tema central é a relação moral do indivíduo com a divindade e com o universo”. Kafka via sua obra como um ato de fé e não buscava através dela desalentar os homens. Ele começou a escrever aos 15 anos, porém em 1907, quando tinha 24 anos queimou todos os textos restando quase nada deste período. A maior parte das obras de Kafka foi publicada postumamente graças a seu conterrâneo admirador Max Brod.
Como Virgílio, que a ponto de morrer encarregou seus amigos de reduzir a cinzas o manuscrito inconcluso da Eneida, Franz Kafka encomendou a Max Brod a destruição dos romances e narrativas que asseguravam sua fama. A afinidade destes ilustres episódios é, se não me engano, ilusória. O delicado Virgílio e Kafka não desejavam profundamente a destruição de seus escritos: só queriam desligar-se da responsabilidade, postergar todos os seus encargos. “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso passou a ser um pesadelo para todos nós.” Daí em diante o leitor vai conviver com uma barata do tamanho de um cachorro, faminta, à mercê da compaixão humana, como em “O Asno de Ouro”, de Lúcio Apuleio, escrito séculos antes, um homem por curiosidade nas forças ocultas se vê transformado em um asno e passa por uma iniciação, em Kafka a barata nos mostra a reação do ser humano diante o inusitado, o fantástico, o repugnante, ele estabelece um diálogo intemporal. Kafka é o maior escritor clássico deste tumultuado e estranho século.