Velhos demais para morrer é um romance bem-feito: acerta ao propor uma distopia em que os idosos não importam mais. Porque, mesmo apontando para um possível futuro, dialoga claramente com o presente. Também há méritos pelo ritmo em que a narrativa é contada, já que, depois de iniciada a leitura, é difícil deixar o livro de lado. Um sopro de inteligência e entretenimento no mercado literário brasileiro.
Vejamos a premissa. Ao atingir a idade zero (o que nós chamamos de 65 anos), a pessoa deve deixar o emprego e morrer. Simples assim. Entre outros motivos, para salvar a economia. O país em que a história ocorre — não sabemos qual, mas tudo indica ser o Brasil — passou por mudanças durante o Ano Anacrônico. A previdência social não deu conta de sustentar aposentados, e não tem havido tantos jovens assim. Velhos não devem existir; somente a juventude importa, conforme o livro — e, sejamos francos, de acordo com a nossa realidade também.
São três os personagens principais do romance: o publicitário Daren, que tem 30 anos restantes como não idoso (35 anos de idade); o garoto Perdigueiro, de 52 anos restantes (13 anos de idade); e a idosa Piedade, já vivendo o ano zero (65 anos de idade). Os capítulos são alternados entre os três, dando ao leitor a função de construir o painel da narrativa. Ponto positivo para o autor, não subestimando a inteligência de quem lê o romance.
Um mundo diferente
É nítida a capacidade de escrita de Neves Mariano, que já soma dois outros livros e trabalhos como roteirista. Para sustentar o mundo distópico, o autor colocou o período da história no futuro. O ano escolhido é o seis da década oito do século zero do milênio dois, embora em alguns momentos passado e presente sejam alternados. O que nós acompanhamos é o período Hebeísta, palavra derivada de Hebe, a deusa grega da juventude.
Daren, o jovem publicitário de sucesso responsável por campanhas premiadas em prol dos não idosos é, talvez, o guia da leitura. Ao completar mais um ano de vida, que não deve ser comemorado, entra em crise e percebe que o local em que vive não é tão cool quanto dizem ser. “Qual o sentido de envelhecer em um mundo que despreza a velhice?”, ele se pergunta, e o questionamento ressoa em nosso tempo presente, fora da obra.
O garoto Perdigueiro é um Cão, um caçador de velhos. O pai dele é uma Raposa, responsável por matar os idosos entregues pelos Cães, e que depois deve levar os corpos às Jiboias, que pagam pelo serviço. No mundo Hebeísta, não só idosos não importam como os humanos são desumanizados, cabendo a eles a identificação como se fossem animais. Na prática, o são. E os cachorros, os animais mesmo, têm nome de armas, como Uzi. O mundo é um moinho.
Piedade, por sua vez, é uma professora de História em fuga. Ao completar a idade zero, conforme a política do país, deve morrer. Evitando sua extinção, opta por se tornar clandestina. Entre cidades abandonadas e espaços rurais, a já idosa engravida de um desconhecido. O rebento prestes a nascer é, sob todos os aspectos, maldição e benção, como tudo na vida, de certa forma.
Os três personagens principais, Daren, Perdigueiro e Piedade, vivem tramas em momentos diferentes, mas que, sob o controle de Neves Mariano, encontram-se, dando um novo fôlego às páginas finais da narrativa. A gravidez de Piedade, aliás, dá um quê de mistério ao enredo, mantendo em estado de alerta quem passa pela obra.
Por se tratar de uma distopia, conforme vemos em clássicos do gênero como Fahrenheit 451, há situações que podem ser entendidas como críticas ao nosso tempo presente. O apagamento da memória a partir da proibição dos livros de História e a formação de milícias para matar quem é desnecessário, com a autorização do governo, são dois pontos que nos remetem diretamente ao Brasil atual.
Cada um faz a leitura possível, claro. Sabemos, entretanto, que procurar interpretar o nosso país a partir da literatura é um erro. O compromisso do romance é com a ficção. Velhos demais para morrer se sustenta como boa história pois impacta o leitor. Aliás, em se tratando de impacto, vale chamar a atenção para a casa Felix Mortem, espécie de igreja onde o culto é para celebrar quem irá para o além de forma voluntária.
O funcionamento de uma Casa de Felix Mortem era simples: na recepção eram feitas as inscrições dos voluntários. Qualquer idoso, saudável ou não, ativo ou não, independentemente de sua classe social, raça ou origem, podia se inscrever. […] A Felix Mortem é fundamental para o reequilíbrio econômico do país.
Há humor involuntário também, como quando ficamos sabendo que os traficantes agora não vendem drogas ou armas. O comércio é outro: “Traficantes e falsários, encostados nos postes de luz, bocejavam preguiçosos, pois ainda não tinham para quem oferecer certidões de nascimento e registros de identificação adulterados”.
Riscos corridos
Velhos demais para morrer foi publicado em 2020, pois venceu o Prêmio Malê de Literatura, ofertado pela editora que dá nome ao concurso. A casa editorial visa dar espaço a escritores e escritoras negros. Muito já se falou que literatura não pode ser confundida com panfletagem política. O debate está em aberto, mas já fique registrado que o romance não se pauta por uma questão específica.
Neves Mariano, por meio da distopia, leva-nos a pensar sobre as constantes reformas políticas, econômicas e sociais pelas quais passamos; a discutir sobre como sobreviver em uma sociedade que está envelhecendo; a refletir sobre o que é e o que poderá ser a resistência. A maior parte dos personagens não tem marcação de raça ou gênero, embora haja um casal LGBTQIA+ em um dos territórios escuros (espécie de local para a resistência), além de mulheres fortes e pessoas negras que são importantes. A representatividade importa, sim, e escrever sobre tudo isso deve ter gerado riscos na linha tênue entre a boa ficção e a militância. O autor se saiu bem.
A narrativa também celebra autoras que, em nosso mundo, são contemporâneas. Piedade, em um momento, lembra-se de que foi influenciada por Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves: mulheres negras, autoras necessárias para a resistência dela — e também para a nossa literatura. Para nossa resistência.