Jornalismo do inconsciente

Resenha do livro "10 presídios de bolso", de Ronaldo Bressane
Ronaldo Bressane, autor de “10 presídios de bolso”
01/02/2002

O escritor Ronaldo Bressane, 31 anos, ficou em dúvida entre atender o celular ou continuar dirigindo. Mesmo estacionado, terminou atropelando nesta entrevista tudo o que é tema — desde literatura pop até drogas. Com uma sinceridade inabalável, fez um strike com o que havia de polêmica pela frente. Natural de São Paulo, onde vive, trabalha como subeditor da revista Trip. Já foi publicitário, revisor e músico. Residiu em outras duas cidades: uma fria (Porto Alegre) e outra quente (Belém). Como não quer ser perfeito, é cheio de manias: obcecado por chocolate, Morphine, Corinthians e Radiohead. Estreou com Os infernos possíveis (Com-arte, 1999), misturando em doses cavalares sexo, música e o absurdo do cotidiano. Hoje é um dos principais talentos e agitadores da nova literatura brasileira, apesar de negar com veemência que tenha um estilo. Ignácio de Loyola Brandão é um dos que elogiaram sua mais recente obra, 10 presídios de bolso, contos um tanto envenenados. Bressane realiza uma escrita lasciva, desconfiada, destinada aos ouvidos mais do que aos olhos. Percebe as palavras como “lâmpada e lápide”. Sua veia não nega o lirismo debochado, seguindo trilhas abertas por Glauco Mattoso e Paulo Leminski. Eis um pouco do que pensa Bressane:

• Vejo que segue uma visão de conjunto, mantendo o nexo entre Os infernos possíveis e 10 presídios de bolso. Há o planejamento consciente da seqüência da obra?
Trata-se de uma trilogia baseada alegórica e metaforicamente na Divina comédia. Assim, no primeiro livro não há esperança possível. Já nos 10 presídios de bolso já existe alguma. O terceiro, provisoriamente chamado paraísos perdidos, será uma espécie de síntese dos primeiros.

• No caso da Divina comédia de Dante, a estréia é o equivalente ao inferno (“deixai a esperança, ó vós que entrais”), o segundo, ao purgatório e o terceiro, ao paraíso. O paraíso não é o que te dá mais medo?
Tem razão, sempre tive medo de ir para o céu, ou, pelo menos, ao céu das cartilhas escolares. Preferi o inferno de James Joyce, mas pretendo vislumbrar um outro paraíso — aquele que Lúcifer viu antes da queda [sugestão que me foi dada após ouvir Heaven Deconstruction, dos Young Gods].

Sua história literária é feita da importância do duplo, da esquizofrenia sadia, da dissimulação, tem uma desconfiança exagerada com a realidade e uma crença absurda na palavra. Como processar este dilema: a dificuldade de nomear um cotidiano que não se acredita?
É como você disse: crer na palavra é um absurdo. Em Hölderlin, lemos que “acreditar é o oposto de conhecer”. A palavra é somente ponte para esse conhecimento, não pode ser um fim em si. E mesmo este conhecimento só se concretiza numa outra pergunta, noutra demanda narrativa. Não diria esquizofrenia “sadia”, posto que a literatura é sintoma de uma doença [“o que vive fere”, João Cabral), e o que escrevo — não chamaria de literatura — surge de alguma contaminação.

• Busca uma literatura despersonalizada, como saber se o livro é de sua autoria?
Desaparecer é minha principal ambição. Uma ausência perfeita é tudo o que um escritor pode almejar, ao lado dos olhos de Homero ou do brinco de Shakespeare, conforme a moda. Mas talvez esteja sendo ambicioso demais e, a virar ar, o que escrevo talvez acabe virando alguma outra coisa — pó, cinza, farinha láctea vendida a 1,99. O ego é o perigo.

• Isso não é purismo?
Talvez uma desculpa a todos os possíveis erros que advenham sob a minha assinatura. Ou então, mais uma mistificação. Um purismo só não basta. Gosto de me sujar de todos os purismos que conseguir criar.

Acabar com os defeitos não é terminar com as virtudes do texto? O que chama atenção de Marcelo Mirisola (Herói devolvido), por exemplo, são os defeitos elevados ao nível de qualidade. Ele não consegue ser outro — é sempre o mesmo no jeito torto de dizer.
É verdade, o Mirisola pode acabar se tornando conhecido apenas por seus defeitos, o que, para ele, não será difícil, já que os tem tantos… [brincadeira, Mirisola, é só brincadeira, calma, olha o seu remédio]. Voltando agora à vida real, isso de erros e acertos é bobagem. Não dá para se pensar nisso numa perspectiva de um, cinqüenta ou cem anos, sempre vai mudar, dependendo do leitor. O que quis dizer com a despersonalização é que, na minha fragmentação narrativa, nessa dispersão múltipla e inconseqüente de tons e perspectivas de cada texto, esse eu-narrador corre o risco de ou se cristalizar em vários, que é a saída, ou desaparecer. Vou correr o risco, enquanto sigo fazendo o que sei fazer: um jornalismo do inconsciente.

• Acredita que a prosa brasileira anda mais solta, mais descompromissada, mais perto da música, mais pop como dizem alguns, com uma nova geração pipocando, e que isso trará um nova roupagem e um maior acesso do público?
A prosa brasileira tem se livrado de um peso, uma culpa, uns compromissos extraliterários que eram próprios à geração 70. Politicamente, o grande inimigo hoje não é a ditadura nem o capitalismo nem as classes dominantes nem o imperialismo. O maior inimigo é nosso imaginário raso, nossa linguagem café-com-leite. O resquício mais forte que tenho da ditadura é o hino nacional que me faziam cantar antes das aulas. Hoje, o grande inimigo é a propaganda. Não se pode lutar contra ela do jeito que os escritores mais engajados faziam, aquele utopista meia-oito é muito ingênuo. Penso que o artista safo combate o inimigo de dentro da sua própria caserna. Sempre fui mais agente infiltrado do que guerrilheiro.

• Quais são as armas contra a propaganda?
Tento usar contra esse tal de pensamento único — que propõe o mundo ideal como um misto de McDonald’s com Coco Chanel — uma linguagem radicalmente cínica e despersonalizada. Até mesmo o objeto-livro deve ser relativizado, por isso escolhi para meu livro um formato de revista, com um código de barras na capa. Utilizando certos procedimentos próprios ao marketing, esse cinismo demolidor que proponho é ambivalente com o leitor: ao mesmo tempo que tenta atraí-lo, o ataca. Para atraí-lo, aparentemente é pop, intrigado com técnicas de manipulação emocional próprias à teoria de massas. Mas logo vem o buraco negro da realidade, demolindo seu sonho de consumo, desmascarando seu desejo fácil, enfiando-lhe goela abaixo uma linguagem que o surpreenda. Um exemplo simples é o conto o país dos sonhos, talvez o mais político do livro, embora pareça ser simplesmente uma história de sacanagem. Sobre aquela história de geração pipoca: esses nomes que vêm surgindo dos 90 para cá nem sempre têm temas, embora sua linguagem pareça mais prosaica, mais cotidiana. O que muda, talvez, seja a forma com que essa literatura se apresenta ao público. Em muitos escritores, somente a embalagem é pop. Pega o livro do Marcelino Freire (Angu de sangue). No conteúdo, o cara é contundente, o que ele tem a dizer não é nada agradável, não tem pipoca ali, só sangue mesmo.

• Qual a principal virtude da nova constelação de autores?
A convergência de outras formas de apresentar o texto — e-mails, e-zines, zines, revistas —, longe do objeto-livro, também contribuiu para que a linguagem seja menos “literária”. Este é um dado positivo, pois demonstra que os escritores estão ocupados com esta realidade, com o reino deste mundo. Não adianta usar uma forma mais inovadora ao apresentar o texto se não houver uma preocupação correspondente no plano do conteúdo. Basta sacar muitos escritores que surgiram nos anos 80: influenciados pelos beats e por certa prosa dita marginal. Lembro-me principalmente da séria Cantadas Literárias (Editora Brasiliense). Seus temas se esgotaram e eles não conseguiram atingir um modelo literário contundente e ao mesmo tempo denso. Fica aquela coisa de palavrão pelo palavrão. É uma ameaça, por exemplo, que detecto em certa tendência atual de tornar o texto demasiadamente autobiográfico ou auto-referente. Sempre fui contra os tais escritores que, como Nelson Rodrigues dizia, “não são capazes de bater um escanteio”. Dentro dessa metáfora, o escritor brasileiro de hoje tem que saber bater escanteio e cabecear ao mesmo tempo. Ou seja: partir da experiência concreta, mas transformá-la radicalmente numa experiência literária inovadora.

• Não acredita que uma linguagem pop, eivada de citações, músicas e distrações ou uma prosa autobiográfica demais não acaba provocando justamente um imaginário raso? Não estaremos mais transcendendo ou transfigurando, mas apenas firmando uma identificação imediata com um o outro. A literatura não teria que ser justamente o contrário: agredir pela linguagem ou alimentar as diferenças?
Depende. A Divina comédia está cheia de citações dentro de um contexto muito particular, como o da política florentina do século 14. Encontra-se também uma gama de citações esotéricas em James Joyce, milhares de citações pop em Thomas Pynchon, intertextos de todo tipo no Leminski e uma porrada de nomes de canções e bandas em Nick Hornby, dúzias de programas e personagens estúpidos de tevê no Marcelo Mirisola, trocentos livros inventados ou não no Borges. O procedimento que cada um usa mexendo nesses signos de cultura é que modula a altura de cada texto, fora aqueles procedimentos puramente estéticos — ritmo, por exemplo. É possível que daqui a 50 anos uma frase como “o inferno é a Hebe Camargo de lingerie” tenha de ser explicada numa nota de rodapé, ou morrerá. Mas essa frase de impacto, mais que signo da cultura onde surge a prosa de Mirisola, é também índice de seu desespero pequeno-burguês, caráter de formação do eu-narrador. Mais que isso: a frase, por seu cunho violentamente imprevisível, por si só garante sua permanência. Pense, por exemplo, nos versos totalmente circunstanciais de um Catulo ou de um Gregório de Mattos: não sabemos de quem se trata aquelas personagens esculhambadas, mas os versos ficam. Se o escritor colocar sua imaginação ou experiência ou cultura pop como cenário, pouco importa. Quero ver é o que o cara faz para enlouquecer o leitor, tirá-lo fora de si. Quero que o cara escreva coisas que eu nunca li.

O texto pop não permanece preso às circunstâncias e referências (televisivas, musicais e literárias) de um tempo determinado, podendo ser incompreensível daqui a uns setenta anos?
Claro, não se pode esquecer de que esse procedimento pop, também chamado de pós-moderno, de colagem de referências pode virar uma modinha. Atualmente, a modinha é seguir o Nick Hornby, autor de clássicos pop como Alta fidelidade. Eu não conheço muitas das bandas a que o Hornby se refere, mas o que ele faz com isso, com dramas e paixões, é o que me interessa. Não podemos ignorar que a indústria cultural colonizou grande parte de nosso inconsciente. Assim como ocorre em relação ao destino, temos que pensar no que fazer com essa herança: se meramente citá-la ou colocá-la em crise. Simplesmente cair nesse paradigma “escrevo sobre meus amores frustrados e meus vinis arranhados” e emular o Hornby será armadilha somente para o escritor sem originalidade. O escritor original pode pegar também esse paradigma e criar algo novo com ele.

• Teríamos como definir o que está sendo feito do Norte ao Sul?
Bom, do Sul eu gosto muito do Daniel Pellizzari pela experimentação e do Daniel Galera pela fluidez, além do Altair Martins pela linguagem. Acho Porto Alegre a cidade mais cheia de novos narradores, poderia gastar um dia citando nomes. O www.nao-til.com.br é o melhor site literário do Brasil. Vasculho aquele conteúdo e fico doido com a quantidade de experimentação. O Sul também tem esse fato interessante de ser um pólo quase autocentrado — muita coisa não chega aqui talvez porque não interesse a vocês… Das antigas, gosto muito do João Gilberto Noll, principalmente de Quieto animal da esquina e A céu aberto, sou fascinado por aquela linguagem sem freios. A produção de Minas Gerais, salvo um Sérgio Fantini aqui e ali, anda meio fraca. No Rio de Janeiro há mais poetas. São Paulo é a terra onde essa nova ficção está mais cristalizada, acho. Nem todos os escritores paulistas nasceram aqui — basta ver o mato-grossense Joca Terron, o pernambucano Marcelino, os mineiros Evandro Affonso e Luiz Ruffato, ou os interioranos Marçal Aquino, Índigo e Nelson de Oliveira, só para citar alguns. Talvez o que reúna esse povo aqui seja o tipo de trabalho. Diferentemente da geração de Drummond ou mesmo da de Guimarães Rosa, cuja maioria era formada por funcionários públicos ou médicos, a maioria dos escritores de hoje são jornalistas, publicitários, editores, roteiristas, designers, revisores. Ou seja: trabalham com comunicação. Não ficam dando meio expediente num trampo que não tem nada a ver com seu talento criativo. São escritores mais profissionais. Nos dois últimos anos, com a quantidade absurda de livros de novos autores que foram lançados, os escritores acabaram se encontrando, estreitando suas proximidades e também suas diferenças. Pode até chamar isso de novas panelas. Vivemos um momento muito bom.

• Veio de onde e pretende desembarcar em que estação?
Meu herói sempre foi o Millôr Fernandes, “enfim, um escritor sem estilo”. Nunca quis ter um estilo na própria linguagem — nesse sentido, sou um anti-mirisola, um anti-evandro, caras que bato o olho na frase e já saco de quem é. Minha relação com a linguagem — e mesmo com a história da literatura — é a mesma que tenho com as drogas. Elas são veículo para uma experiência estética, jamais um fim em si. Atrás daquilo que a Clarice Lispector falava: “estou atrás do que está atrás do meu pensamento”.

• Quais drogas? Trabalha a partir de alguma mística, transe? Procura um esvaziamento da personalidade?
Fumo maconha, gosto muito de drogas psicodélicas, mas nem sempre escrevo sob seu efeito, não procuro transe nenhum — se o transe aparecer, problema dele. As drogas nem sempre ajudam, às vezes dispersam o foco. Como as armas e os livros, deve-se ter responsabilidade ao usá-las. Maconha, álcool e LSD são só mais um truque que você pode usar ou não. Sinto minha personalidade muito mais vazia quando acesso um banco 24 horas. Baudelaire escreveu: “se um poeta fumar haxixe, terá sonhos de poeta; um porqueiro, sonhos de porqueiro”. Tive grandes idéias fumando um, assim como relatei coisas que me aconteceram enquanto tomava algo, mas também vivi e escrevi porcarias. Cada um se droga com o que pode. Conheço um escritor que só escreve depois de tomar danoninho.

• Sua literatura é marcada pela mobilidade, é o que se leva no bolso, o que é portátil. É uma viagem temática e formal?
São várias viagens formais. Eu tenho uns temas que se continuam, como se escrevesse vários livros ao mesmo tempo. Há uma ligação com música muito forte — assim, saem umas coisas tipo Sujeitinha, em cima do Coração Materno, do Celestino; Bacanal, com base no Carinhoso, de Braguinha; Fim do mundo do fim, extraído do Juízo Final, de Nelson Cavaquino e Nervos, inspirado em Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues. Não sei onde isso vai dar. Provavelmente, num sebo.

• Antes havia um contato direto do autor com leitor. O leitor era quase pressentido. Ocorre atualmente uma desintegração da unidade, escreve-se para muitos ao mesmo tempo e ninguém na verdade. O escritor virou um ator no palco, escrevendo para a entidade “público” e esquecendo de conversar a sós com seu leitor. Isso não é prejudicial?
Bom, eu nunca escrevi para ninguém a não ser eu mesmo. Não penso em atingir a determinado público. Escrevo, antes de tudo, para me divertir, ou para sofrer. Como você mesmo afirmou, o que a gente publica são só as ruínas. Um mestre que tive, chamado Gílson Rampazzo, autor de Os deuses chutam lata na consolação, me falou uma vez que o escritor tinha que ter um “compromisso” com o leitor. É uma posição. Meu compromisso é somente para com minhas personagens, como se a história só interessasse a elas, e o narrador fosse não mais que uma entre elas. Só devolvo ao mundo as pegadas. O caminho, que cada um refaça, com seu próprio corpo.

Os grandes autores criam sua tradição? Ainda está na busca da sua?
Todo autor cria sua própria linhagem, não acredito muito nesse troço de influência. Mas, como sou um autor bastardo, desencanei disso. Meu propósito é escrever sem DNA. Tem alguns escritores a quem acendo velas, embora, em geral, eu os acabe virando de ponta-cabeça. Que é, afinal de contas, o que a gente tem que fazer com essa coisa chamada literatura, só para mostrar quem é que manda. Quem tem olhos para ver, que leia — antes que seja lido.

• Entre a beleza e a verdade, fica com a mentira?
Não é possível beleza sem mentira.

10 presídios de bolso
Ronaldo Bressane
Altana
106 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho